Vivemos tempos onde a intolerância religiosa tornou-se uma parte da rotina de diversos grupos e comunidades que vivenciam e professam culturas e opiniões diferentes das dominantes em nosso país. Esse fenômeno é caracterizado, segundo o Ministério Público, por condutas de deslegitimação de crenças e religiões que diferem das suas, de modo a estigmatizar, excluir, desqualificar, segregar e silenciar as crenças e rituais considerados inferiores, em uma tentativa de manutenção do exercício de poder do que é socialmente visto como hegemônico. Vale ressaltar que praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de religião configura o crime de racismo previsto na Lei dos Crimes Raciais a Lei nº 7.716/89.
O fenômeno da intolerância religiosa remonta desde o período colonial onde o racismo religioso legitimou a escravidão e o genocídio de populações africanas e indígenas. No século XIX para o XX, com a Eugenia sendo uma ciência legitimada na maior parte do mundo, ocorre um incentivo à miscigenação racial exposta em teses nacionais e estrangeiras onde o Brasil é retratado de forma inferiorizada como um país pobre, miscigenado e tropical. A tese do branqueamento da população ganha corpo e a Eugenia apresenta projetos de reforma da população brasileira que é apropriado por intelectuais e políticos levando a um processo de imposição violenta de mudanças na identidade nacional a partir da negação da identidade de diversas populações.
O movimento eugênico no Brasil foi formado por médicos, juristas, educadores e higienistas. Os debates transitaram entre temas como saúde pública, higiene, saneamento, educação e também a própria formação da nacionalidade, uma vez que o fato de o Brasil ser uma das nações mais miscigenadas do mundo, indicavam, segundo esses especialistas, uma necessidade de ampliar as reformas do ambiente social.
Nesse contexto poder e política passam ao domínio das representações sociais e de suas conexões com as práticas sociais se colocando como problemática do simbólico. A partir daí a política adentra no nível das representações sociais, inclusive de saúde e doença, imaginários sociais, mentalidades e memórias coletivas. As culturas indígenas e africanas são estigmatizadas e inferiorizadas com leis que reforçavam a exclusão e negação dessa população.
A criação da teoria de branqueamento, o debate sobre a imigração, as teses debatidas com o intuito de formação de uma ideologia de um Brasil mestiço em formação permitiram ao Brasil criar uma espécie de “cortina” que ocultou, por meio do mito da democracia racial, a ideia de uma harmonia entre as raças onde seria possível conciliar os antagonismos raciais, o que se manifestou como uma falácia expressa na violência racial, inter-religiosa e cultural que vemos nos dias de hoje.
Podemos perceber que o racismo religioso, o racismo científico e a eugenia formaram uma cultura política no Brasil uma vez que a mesma estabeleceu uma linguagem simbólica que permitiu aos membros desse movimento inserir uma leitura comum do passado e uma projeção de futuro que seria vivida em conjunto sob a dominação de uma classe. A demonização e desumanização das religiões de matriz africana, indígena e seus praticantes fomentaram a marginalização social de um modo perverso o que torna fundamental recordar e reforçar que a Constituição Federal, no artigo 5º, inciso VI, consagra a liberdade religiosa como direito fundamental.
No entanto, desde o ano de 2019 houve um aumento de mais de 60% dos registros de denúncias de intolerância religiosa, cometida, em sua maioria, contra religiões de matrizes africanas. É preciso refletir para a modificações de atitudes por meio da educação das relações étnico raciais e direitos humanos bem como a aplicação do rigor da lei em casos onde tais crimes são praticados.
Referências Bibliográficas
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