O relatório final do inquérito do golpe mostra que oficiais das Forças Especiais (FE), os kids pretos, buscaram convencer os generais do Alto-Comando do Exército a aderir ao golpe militar para impedir a posse do então presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva e manter Jair Bolsonaro no poder. Diz o relatório que esses oficiais, "com formação em forças especiais, estava lotados "em postos relevantes dentro da estrutura do Exército".
Eram, principalmente, assessores de generais de quatro estrelas, membros do ACE. Eles fizeram uma reunião, no dia 28 de novembro de 2022, na SQN 305 BL I, em Brasília, com o objetivo, segundo a PF, "de executar ações para pressionar alguns integrantes do alto comando, a aderirem ao golpe de Estado, que estava em curso".
"Novamente o objetivo era o emprego de técnicas de forças especiais em ambiente politicamente sensível para desencadear ações que incitassem o meio militar e, com isso, convencer os comandantes que mantinham uma conduta legalista, em especial, o comandante do Exército, general (Marco Antônio) Freire Gomes, a aderir ao intento golpista.", diz o documento da Operação Contragolpe, que levou ao indiciamento de Bolsonaro e outros 36 acusados pelos crimes de golpe de Estado, tentativa de abolição violenta do estado democrático de direito e organização criminosa e organização criminosa.
Recuperação de dados apagados dos telefones
Segundo os federais, apesar de apagar os dados em seus telefones celulares, as medidas cautelares de quebra de sigilo telemático "foram exitosas em recuperar trocas de mensagens pelo aplicativo WhatsApp que demonstraram o objetivo da referida reunião". Segundo os federais, os assessore atuaram de forma deliberada, sem conhecimento dos comandantes, em evidente quebra de hierarquia, com a finalidade estabelecer uma relação de confiança entre Freire Gomes e Bolsonaro.
O objetivo seria que o então comandante do Exército aderisse a tentativa de golpe de Estado, dando o suporte armado à ação que estava em curso. Para exemplificar essa ação, os federais citam mensagens do coronel Correa Netto, então assistente do comandante militar do Sul, general José Sant'Anna Soares Silva, e do coronel Fabrício Moreira de Bastos, na época integrante do Centro de Inteligência do Exército (CIE).
Correia Netto escreveu que objetivo era "reunir alguns FE em funções chaves para termos uma conversa sobre como podemos influenciar nossos chefes". "Para isso vamos fazer uma reunião em BSB (Brasília)". Após a reunião, houve novas trocas de mensagem entre Correa Neto e o coronel Fabrício Moreira de Bastos descreveram as "fragilidades identificadas e as ações que seriam adotas, dentre elas, a utilização de técnicas de forças especiais no campo de controle da informação, a criação de um denominado 'gabinete de crise', no Comando de Operações Terrestres (COTER)".
Na época, o COTER eras comandado pelo general Estevam Theóphilo, um dos 37 indiciados pelo golpe. Ainda no final da mensagem, os investigados evidenciaram que o objetivo final das ações seria estabelecer o tal vínculo de confiança entre Freire Gomes e Bolsonaro. "Além disso, também descreveram que o então presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) e ministro do STF (Supremo Tribunal Federal), Alexandre de Moraes seria o alvo a ser atacado, utilizando o jargão militar de 'centro de gravidade'."
Entre as ações dos oficiais estava a confecção de uma carta. A carta em questão recebeu o título de 'Carta dos oficiais superiores ao Comandante do Exército Brasileiro'. Em outra frente os investigados atuaram para pressionar o então Comandante Militar do Nordeste, o general Richard Nunes (atual chefe do Estado-Maior do Exército), o então Comandante Militar do Sudeste, Tomás Paiva (atual comandante do Exército), e o então chefe do Estado-Maior do Exército, general Valério Stumpf (atualmente na reserva). Todos eles e o comandante do Sul, general Sant'Ana eram os principais opositores do golpe no ACE. Tudo siso foi definido na reunião no dia 28 de novembro de 2022 com coroneis.
A divulgação da mentira das fraudes das urnas eletrônicas
O relatório da PF prossegue afirmando que, nessa linha de ação, os militares Sergio Ricardo Cavaliere de Medeiros, Marcos Paulo Cavaliere e Hélio Ferreira Lima "disseminaram estudos sem qualquer lastro, que teriam identificado o registro de votos após o término do horário de votação e a existência de inconsistências no código-fonte das urnas eletrônicas que propiciaram fraudes nas eleições presidenciais".
Esse material teria sido "disponibilizado no serviço de nuvem Google Drive, editado pelo então assessor especial da Presidência da República, Tércio Arnaud Tomaz, "integrante do autodenominado gabinete do ódio". Ele teria encaminhado tudo ao então ajudante de ordens de Bolsonaro, o tenente-coronel Mauro Cesar Cid, "possivelmente com o objetivo de facilitar a propagação do conteúdo falso". Esse conteúdo havia sido produzido originalmente pelo marqueteiro argentino Fernando Cerimedo.
O relatório conclui que a "diversificação da disseminação do conteúdo falso produzido pelo argentino Fernando Cerimedo continuou a ser realizada pelos investigados". O tenente-coronel Marques de Almeida, então lotado no COTER, segundo os federais, "dentro da divisão de tarefas estabelecida pelos investigados, atuou deliberadamente para burlar a ordem judicial de bloqueio do conteúdo falso sobre o sistema eleitoral brasileiro, disponibilizando o material produzido por Cerimedo em servidores localizados fora do País".
De acordo com a PF, o Relatório de Fiscalização do Sistema Eletrônico de Votação produzido pelo Ministério da Defesa também "foi um instrumento utilizado pelo grupo investigado para reforçar o sentimento de uma possível fraude nas eleições presidenciais de 2022".
Os federais indicam ainda as digitais de Bolsonaro no episódio. "Os dados analisados indicam o então presidente da República Jair Bolsonaro determinou a postergação da divulgação do referido relatório, pelo fato de não terem identificado qualquer indício de fraudes ou vulnerabilidades no sistema eletrônico de votação".
Segundo a investigação, dentro do planejamento traçado, a publicidade do relatório destruiria a narrativa construída para manter mobilizadas as manifestações, que serviriam de suporte para a execução do golpe de Estado. O Relatório de fiscalização do Ministério da Defesa foi publicado em 9 de novembro de 2022.
Diante da repercussão de que a fiscalização não identificou qualquer indício de ilegalidade nas eleições de 2022, o então Ministro da Defesa, general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, no dia seguinte, "no sentido de manter a narrativa de possível fraude eleitoral, divulgou uma nota afirmando de forma contraditória que 'embora não tenha apontado, também não excluiu a possibilidade da existência de fraude ou inconsistência nas urnas eletrônicas e no processo eleitoral de 2022'".
O Estadão busca contato com os citados. Até a publicação deste texto, não havia conseguido localizar a defesa dos oficiais citados pela Polícia Federal.