A Justiça de Cerqueira César, no interior de São Paulo, deu sentença favorável ao estudante Alison dos Santos Rodrigues, de 18 anos, que foi impedido de se matricular no curso de Medicina da Universidade de São Paulo (USP) após a instituição não reconhecer sua autodeclaração como pardo. O juiz Danilo Martini de Moraes Ponciano de Paula declarou a nulidade do ato administrativo de não confirmação da autodeclaração e determinou que seja procedida a matrícula na Faculdade de Medicina da USP (FMUSP).
A decisão é de primeira instância e a universidade pode entrar com recurso. A USP informou que não se manifestará sobre a sentença.
Alison já estava frequentando o curso de Medicina da USP de forma provisória, devido a uma liminar dada pela Justiça no dia 5 de abril deste ano. Estudante de escola pública, ele havia sido aprovado no Provão Paulista no sistema de cotas, mas foi barrado após receber mensagem de boas-vindas da faculdade e participar da recepção aos calouros. A Comissão de Heteoidentificação da USP não aceitou sua autodeclaração de ser negro, de cor parda.
Na sentença publicada nesta quarta-feira, 25, o juiz afirma que as características do jovem permitem concluir "que este se enquadra na condição de pessoa parda, já que possui nariz largo, pele escura e cabelo crespo". O juiz considerou que, por ter sido selecionado via Provão e não pela Fuvest, o estudante foi submetido a uma avaliação de forma virtual, à distância.
Para o magistrado, essa forma se mostrou "prejudicial e anti-isonômica, em nítida violação ao princípio constitucional da igualdade", pois o tratamento é diferente do prestado ao candidato que tenha feito a Fuvest. "Pode-se concluir, portanto, com razoável probabilidade, que o autor foi prejudicado pelas condições externas na ocasião de sua avaliação, que foi realizada de forma virtual, levando a banca da heteroidentificação a entendimento diverso daquele que seria adotado caso a avaliação fosse realizada de forma presencial", escreveu na sentença, a qual a reportagem teve acesso.
No processo, a universidade disse que o candidato passou pela 1.ª fase da heteroidentificação, análise dos documentos e fotos, "em que nenhuma das bancas confirmou sua auto identificação para os critérios da universidade (sem que uma não soubesse da decisão da outra)."
Já na segunda etapa da análise, por videoconferência, a banca conclui que "o candidato tem pele clara, boca e lábios afilados, cabelos raspados impedindo a identificação, não apresentando o conjunto de características fenotípicas de pessoa negra".
Alison disse que a decisão do juiz o deixa feliz, após um período de espera. "Foram meses de incertezas e ansiedade, mas me sinto aliviado e, principalmente, grato. Cada etapa serviu como aprendizado e fortalecimento e, ao olhar para trás, posso ver o quanto cresci durante essa trajetória."
Segundo ele, cursar Medicina na USP sempre foi seu sonho. "A Medicina, para mim, sempre foi muito mais do que uma profissão; é uma vocação, um chamado para cuidar do outro, para fazer a diferença na vida das pessoas", disse. "Tudo o que passei até agora só fortaleceu minha determinação."
A advogada Giulliane Basseto Fittipald, que defendeu Juliano através de convênio mantido entre a Defensoria Pública de São Paulo e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP), disse que a decisão pode ajudar outras pessoas a estudar em uma universidade como a USP. "Nós sabemos que ainda cabe recurso, mas eu já tenho orgulho de onde chegamos", afirmou.
Critério mudou
Em julho deste ano, a Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento decidiu uniformizar o processo para todas as formas de ingresso - Fuvest, Enem USP e Provão Paulista -, no que se refere à averiguação das características fenotípicas dos candidatos autodeclarados pretos e pardos, um dos procedimentos criticados na decisão da justiça. Já para o vestibular de 2025, após a análise das fotografias feitas na primeira etapa da averiguação, comum a todos os candidatos pretos ou pardos, os candidatos não aprovados serão convocados para uma oitiva virtual.
Segundo a USP, a existência de dois modelos de entrevista - presencial para a Fuvest e virtual para o Enem USP e Provão Paulista - levou a questionamentos e judicialização por parte de alguns candidatos.
A USP adota as cotas para alunos autodeclarados pretos, pardos ou indígenas nos cursos de graduação desde 2018. A Comissão de Heteroidentificação, criada em 2022 e adotada no vestibular de 2023, era uma demanda dos próprios estudantes, para prevenir fraudes.
A banca de heteroidentificação confirma a autodeclaração feita pelos estudantes com base nas características fenotípicas, como os traços físicos de negros, pretos ou pardos. São levados em conta características como a cor da pele, o formato do nariz, os lábios e a textura dos cabelos. A comissão não avalia critérios de ancestralidade, como o fato da pessoa ter parentes negros.
A comissão é formada por cinco membros, sendo um professor da universidade, um servidor técnico-administrativo, um aluno de graduação e um aluno de pós-graduação, ambos indicados pela Coligação dos Coletivos Negros da USP.