Usar o cabelo natural pode parecer algo simples, mas para uma mulher negra alvo do preconceito por ter fios crespos e pele escura, assumir sua real identidade é uma grande conquista. Após anos alisando o cabelo, a cabeleireira Paula Mercês, de Apucarana, passou por uma transição capilar e hoje ostenta os fios naturais e ajuda outras mulheres a se redescobrirem por meio de sua profissão. Assista ao vídeo no fim do texto.
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“Quando vi meu cabelo cacheado crescendo, me apaixonei. Decidi que queria ajudar outras mulheres a se aceitarem como são”, afirma. Foi então que ela decidiu se especializar em cabelos com curvatura.
Paula relembra comentários preconceituosos que ouviu durante sua transição capilar, como quando foi questionada por deixar de alisar os cabelos. “Ouvi que estava ‘voltando a ter cabelo ruim’. Isso só reforçou minha vontade de seguir e mostrar que não existe cabelo ruim, mas pessoas que não sabem cuidar dele”, conta.
A professora Tamires Gorbatto, de Apucarana, também ouviu muitos comentários preconceituosos sobre seu cabelo crespo na infância, o que a motivou a alisar. “Chamavam meu cabelo de bombril, bucha, essas coisas”, recorda.
Os ataques sofridos durante a infância evidenciam a necessidade de uma educação antirracista, que na opinião de Tamires, deve começar em casa com a família, que deve ensinar conceitos de respeito e valores. “Eu acho que a educação e o respeito têm que vir de casa. Os pais devem ensinar sobre as diferenças. A escola tem papel importante, mas, mais importante que a escola é a família”, reitera.
Na opinião da professora, os padrões de beleza impostos pela sociedade também são prejudiciais. “A sociedade tem que parar de colocar paradigmas de beleza. Cada um tem suas características e isso não devia ser determinado entre ser feio ou bonito”, opina.
Após 17 anos, Tamires decidiu assumir seu cabelo natural, um processo que começou de dentro para fora. “A transição não é só sobre o cabelo. Eu mudei muito internamente também”, conta.
A professora é cliente do salão especializado em cabelos com curvatura, das cabeleireiras Andressa Saretti e Ana Maria Winkelmolen. Após passarem pelo processo de transição capilar, elas notaram uma certa carência de profissionais especializados em cabelos com curvatura e decidiram apostar nesse nicho de mercado. “Os cabelos com curvaturas precisam de cuidados específicos, que não são os mesmos de cabelos lisos”, explica Saretti.
Para Andressa, assumir o cabelo natural ultrapassa a barreira estética, é um sinônimo de empoderamento. “Para nós, assumir o cabelo natural é muito mais que estética, é aceitar as próprias origens, resgatar a autoestima e ter a liberdade de não ter que alisar os cabelos para se sentir bem”, ressalta.
Em relação ao cabelo afro, Ana Maria reforça que é um sinônimo, aceitação e resistência diante dos padrões de beleza pré-estabelecidos. “Por muito tempo o cabelo afro foi desvalorizado, muitas vezes alisado de maneira agressiva, pois o liso sempre foi visto como um padrão de beleza a ser seguido. E assumir os cabelos naturais é uma forma de dizer não aos padrões estéticos impostos pela sociedade, é uma forma de autoaceitação, pois a maioria de nós que temos cabelos cacheados e crespos já sofremos algum tipo de preconceito ou passamos por algum dissabor”, afirma.
Antes da transição, é preciso autoaceitação
A assistente administrativa Maria Fernanda Reis de Lima, também teve dificuldade de aceitar seu cabelo crespo. "Na época não tinha muitos produtos apropriados e nem muito salões especializados. Quase ninguém sabia o que fazer ao certo e alisar o cabelo se tornou mais fácil", comenta.
Ela decidiu mudar ao perceber outras referências de mulheres com cabelo crespo na televisão e nas redes sociais e se sentiu incentivada. Para iniciar o processo foi necessário trabalhar a autoaceitação. "Tentei uma primeira vez, mas não consegui ir até o fim, porque ainda há muito preconceito. Porém, na segunda vez, com ajuda da minha família, me reencontrei e consegui finalizar a transição. Me senti muito feliz e realizada por ter conseguido me aceitar como eu realmente sou. Aprendi que quem está passando por uma transição deve aceitar suas origens e respeitar também os seus limites, talvez não seja na primeira vez que consiga , mas na próxima com certeza", comenta.
Racismo estrutural ainda existe em Apucarana
O coordenador do movimento Diversidade Cultural Plural, Carlos Alberto Figueiredo afirma que o racismo estrutural continua muito presente na sociedade apucaranense, ao ponto de o cabelo afro impedir uma contratação.
“Existe um preconceito com pouco menos de expressão, mas existe. Jovens já vieram me questionar que não conseguiram emprego devido a seu cabelo afro. Uma jovem disse que teve todos os requisitos aprovados, mas pediram para ela alisar o cabelo ou até fazer outro penteado sem usar o cabelo tão volumoso. Isso acaba com a autoestima de uma pessoa”, denuncia.
Figueiredo destaca que além de ícone de beleza e estilo, o cabelo afro traz consigo uma vasta história ligada ao movimento negro e deve ser motivo de orgulho e não de depreciação. Segundo ele, entre as décadas de 1960 e 1970 houve uma crescente busca pela valorização da beleza negra nos Estados Unido. Naquele período, o cabelo afro ganhou papel central na estética dos negros americanos.
“O cabelo afro traz um sentimento de pertencimento, de resistência, um estilo de vida. Era um grito de não ao racismo”, afirma.
De acordo com Figueiredo, assumir o cabelo afro é uma forma de resistência à estética do racismo estrutural que desvaloriza a beleza negra ao ponto de chamar o cabelo crespo de “ruim” ou “feio”.
Para ele, a validação do Dia da Consciência Negra, comemorado hoje, é mais um grito de resistência negra no país, com mais volume e expressão.
Texto por Cindy Santos e Lis Kato.
Assista ao vídeo: