O cafezinho é pausa. A xícara de café especial é um convite para apreciar uma história inteira. E ela começa a ser escrita pelas mãos de quem lida lá no cafezal. “Sempre morei na roça e o café é a minha paixão”. “Sempre lutei”. “Sou cafeicultora”. “É incrível ver formar os grãos que vão virar uma das bebidas mais consumidas no mundo”. “Me causa emoção desde a florada até a colheita”. “Esse ano comecei a produzir cafés especiais”. “Está sendo um aprendizado maravilhoso”. “Você irá apreciar um café colhido grão a grão”. “Você está provando meu café”.
As falas de Elizabethe, Maria, da Lourdes, Adriana, da Marli, Janaína e Lisiane, juntas, contam a história das Mulheres do Café do Vale do Ivaí. O nome vem do projeto iniciado pelo Instituto de Desenvolvimento Rural do Paraná-Iapar-Emater (IDR-Paraná) e que está completando seu primeiro ano de capacitação de mulheres que atuam diretamente na cultura cafeeira de Grandes Rios, Lidianópolis, Jardim Alegre e Ivaiporã. Elas estão produzindo cafés especiais, com assistência técnica desde o manejo na lavoura até a outra ponta da cadeia, a comercialização.
Janaína lembra que tudo começou em fevereiro de 2021, quando a assistente social do IDR-Paraná, Natália Duarte Vettor, fez um convite para uma reunião. Cansadas por tantas perdas na produção e com o baixo preço do café, elas já sentenciavam como a própria Janaína: “Isso aí não vai dar em nada”. Ou se perguntavam como a Bruna: “Será que vai trazer algum resultado?”.
“Mas elas aceitaram com vergonha de falar não pra minha insistência”, revela Natália. “Quando entenderam que não adiantava lutar pelo preço se não tiver qualidade, começaram a acreditar”. Em janeiro deste ano, três integrantes foram até o grupo. “Agora elas mandam mensagem: quando a gente vai começar? Não tá muito parado?”, conta.
As 26 mulheres cafeicultoras do Vale do Ivaí têm em quem se inspirar: as mulheres do Norte Pioneiro do Estado. Criada pelo IDR-PR em 2013, a iniciativa por lá já foi abraçada por mais de 250 mulheres, de 11 municípios, reconhecidas por suas notas nos concursos de cafés especiais.
O objetivo inicial no Vale do Ivaí já foi alcançado, que é dar visibilidade às produtoras. “Elas tiveram espaço, aprenderam como fazer melhor o que já faziam e puderam ser ouvidas, primeiro dentro de casa, e os maridos apoiaram”, comemora Natália. Os alvos a médio e longo prazo incluem criar uma associação para que façam compras coletivas, baixando o custo da produção. “Queremos que elas caminhem com as próprias pernas”.
COLHENDO OS FRUTOS
Passo a passo, as mulheres vão colhendo bons frutos, exatamente como se colhe um café especial: grão a grão. Desde a infância, em Grandes Rios, o café rodeou a vida de Janaina Assad da Rocha, casada e mãe de um menino de 13 anos e uma menina de 9. “Já tinha ouvido falar do café especial quando meu marido ia nas reuniões. Eu fazia parte do processo todo, do trabalho na lavoura, mas sem o interesse de aprender uma coisa nova”, diz.
Uma das coisas “novas” que aprendeu foi como extrair um café especial dos mesmos 7 mil pés em produção, de onde a família tirava apenas o café tratado como commodity, uma mercadoria em que o preço não varia conforme a qualidade. O mesmo pé que produz o café tradicional pode produzir o café especial, desde que todas as etapas sejam realizadas conforme recomendação técnica, o que vai exigir muito mais trabalho e tempo para uma produção menor, mas com lucro atraente.
“Temos uma latitude que é propícia. Mas é um trabalho difícil, incluindo a escolha da variedade, a nutrição e o controle de pragas, a colheita, a secagem, a classificação e a retirada dos grãos com defeito”, destaca o engenheiro agrônomo Cleversom da Silva Souza, extensionista do IDR-Paraná, envolvido na implantação do projeto e no acompanhamento técnico das produtoras.
“Antes, a colheita era feita com tudo junto, com grãos verdes, maduros, secos. Mas agora faz de pouco, porque é mais delicado, tem mais detalhe, exige mais tempo”, descreve Janaina, ao falar sobre a diferença de execução em apenas uma das etapas. Sobre o resultado final do café na xícara, ela avalia. “É gratificante porque a pessoa fala que sente aroma e gosto diferentes, bem melhor. Isso me preenche”.
E o preço triplicou. O café especial, em média, remunera acima de 50% do preço do commodity. Em lotes avaliados em concursos, o que aconteceu com a Janaina, os atributos elevam ainda mais a remuneração.
Animados, ela e o marido plantaram mais 2 mil mudas, que já precisam superar a seca para se desenvolver. “Já perdemos várias vezes o plantio, mas não desistimos”, comenta a cafeicultora. Fortes geadas levaram muitos produtores a erradicar ou podar suas lavouras.
No Paraná, segundo levantamento do Departamento de Economia Rural (Deral) da Secretaria de Estado da Agricultura e Abastecimento, a área cultivada com lavouras em idade produtiva sofreu uma redução de 15,9%, passando para os atuais 27.797 hectares. A safra 2022 deve sofrer uma redução de 35,6%. Mas Janaina espera que as notícias boas desse primeiro ano do projeto da qualidade continuem. Em 2021, o trabalho em 11 hectares rendeu 130 sacas (cada saca tem 60 kg beneficiado) de café tradicional e 100 kg de café especial.
Na produção paranaense, os cafés especiais representam 10% a 15%. Numa propriedade com foco na qualidade, o café especial pode chegar a 30% do total da produção. Fatores como temperatura e chuvas interferem muito no produto final.
SUSTENTABILIDADE
“O projeto precisa ser sustentável, ou seja, economicamente viável, socialmente justo e ambientalmente correto, para se prolongar por gerações”, define o extensionista. E vem dando certo. No Vale, o projeto gera qualidade não apenas no café.
“Antes ficava com vergonha, agora a gente vai pra reunião, aprende, chega e conta. Agora vai com tudo”, resume Janaína, que contou com o incentivo do marido para ir naquele primeiro encontro das mulheres e não parou mais. Fez curso de classificação física, encontros práticos, visita ao Iapar e à Aviva Cafés Especiais em Londrina. A nova geração também vê a diferença. “A minha filha diz: ‘tá famosa mãe’. Criança fica antenada e ver isso é importante para querer continuar no campo”.
“Faz quatro anos que voltei. Quando resolvi, eu me perguntava se o café daria renda pra gente se sustentar”, lembra Bruna Vertuan, de 24 anos, casada, que voltou a viver no campo. Na cidade, fez Licenciatura em História e Contabilidade, além de outros cursos, agora é a mais jovem do grupo das mulheres do Vale do Ivaí. “O projeto me incentivou. Antes eu trabalhava junto, mas não fazia tanto. A gente foi abrindo os olhos e agora quer saber mais e buscar melhorias”.
Foi só o primeiro ano e elas já experimentaram o reconhecimento dos concursos de cafés especiais realizados no Paraná de acordo com a Metodologia de Avaliação Sensorial da SCA (Specialty CoffeeAssociation), que diferencia o café especial como aquele que atinge, no mínimo, 80 pontos na escala (que vai até 100), sendo avaliados quesitos como aroma, doçura, acidez, corpo, sabor, gosto remanescente e balanço da bebida.
Bruna conquistou a maior nota para o grupo: 84 pontos no CUP das Mulheres do Café do Norte Pioneiro. No leilão em que participam empreendimentos como cafeterias, micro torrefadoras e exportadoras, ela recebeu R$ 54 por quilo de café. No mesmo período, o preço pago pelo café comum não chegava a R$ 15 por quilo.
“Muitas pessoas não veem nosso dia a dia. Algo que a gente produz com nossas próprias mãos até chegar no café especial tem muito cuidado, tem seca, tem geada”, enfatiza a produtora, que trabalha com o marido em 4,8 hectares de cafezal. Ela achava que não participaria do concurso devido à geada, mas com o apoio das equipes do IDR-Paraná conseguiu reunir a quantidade mínima exigida pelo certame. Na avaliação sensorial, o lote ostenta a descrição “açúcar mascavo e acidez brilhante”.
No Concurso Café Qualidade Paraná, promovido pela Câmara Setorial do Café do Paraná, Janaina alcançou 83,10 pontos e ficou entre os 20 melhores na categoria natural, junto com a colega de Grandes Rios, Adriana Terracini. No Cup das Mulheres, com nota 83, o café dela foi adquirido pela Associação das Mulheres do Norte Pioneiro a R$ 52,00 o quilo. Sobre o que esperar na próxima safra, ela lembra de quando conheceram a cafeteria em Londrina. “Provamos um café de 90 pontos. A gente fica motivada né, quem sabe?”.
MARCA PRÓPRIA
O café plantado, colhido, secado pelas mulheres vai ser torrado e moído ali mesmo na região e já tem embalagem especial. “Elas olham para essa embalagem cor de rosa e se identificam, se reconhecem nela”, atesta Natália, do IDR-PR.
As embalagens da primeira edição do café das Mulheres do Vale do Ivaí aguardam o lançamento oficial. A venda deve ser feita online pelas redes sociais da Ravar Cafés, agroindústria familiar localizada no Distrito de Jacutinga, em Ivaiporã, de onde despontam cafés campeões nas edições do Concurso Café Qualidade Paraná.
“Minha mãe faz parte do grupo Mulheres do Café”, orgulha-se o degustador de cafés Lucas Rafael Ravar, filho de Lisiane e bisneto de cafeicultores. O rumo da produção da família mudou em 2010, o que era feito no sistema antigo foi renovado pensando no café especial, com a plantação de novas variedades.
“Em 2016 a gente já tinha um café tipo bebida mole, mas dependia de atravessadores. Em 2018, participamos do Concurso Café Qualidade Paraná e ficamos em quinto lugar com um microlote inscrito no nome da minha mãe, mesmo ano em que tivemos um primeiro lugar aqui do distrito, com o café do Márcio Fávaro e da Silvana, que também faz parte do grupo das mulheres do café. Notando esse potencial, a nossa família decidiu implantar a torrefação dentro da propriedade e hoje somos uma agroindústria familiar”, relata.
Lucas Ravar se envolveu no projeto, a princípio, para avaliar a degustação dos cafés das mulheres. Provou mais de 100 amostras durante a safra e se surpreendeu, porque, segundo ele, muitas das mulheres até então nunca tinham tido contato com o mundo dos cafés especiais. Sobre a avaliação sensorial, ele menciona que os cítricos e frutados são atributos mais comuns à bebida da região, mas houve boas surpresas, com notas de achocolatados e especiarias.
Ravar destaca o café da Janaina, que “destoou” no melhor dos sentidos para um mercado que busca particularidades, com notas de frutas vermelhas e corpo acentuado; o café da Bruna “um nanolote espetacular”, e o café da mãe “bem redondo”. Apesar dos termos um pouco estranhos para os leigos, estas são as sensações que aguardam o consumidor na xícara.
COMERCIALIZAÇÃO
Com as mulheres ganhando confiança, foi chegando a hora de pensar no final da cadeia produtiva: a comercialização. Apesar de os concursos absorverem parte da produção individual, era possível dar mais visibilidade para elas coletivamente. “A nossa agroindústria comprou uma parte da produção para dar mais visibilidade e pro pessoal da região poder experimentar o café especial da própria região”, destaca Ravar.
Aproveitando os clientes da marca, o café delas pode chegar rapidinho à Capital e a outros estados, como Santa Catarina, Rio Grande do Sul, São Paulo e Rio de Janeiro. “Nosso intuito é que o projeto deslanche pra valorizar a mulher na lavoura, que é agricultora, é mãe, é esposa”.
São 450 caixinhas prontas. O café de qualidade do Vale do Ivaí será torrado e moído conforme a demanda e, nas embalagens, vai acompanhado por uma carta escrita à mão contando a história dele, melhor, contando a história de vida de uma delas, como uma certidão do café pelas mãos de quem lá na planta foi dando os primeiros cuidados, colhendo e sendo acolhida em um projeto feito a muitas mãos.
“Olá, me chamo Lourdes. Sempre lutei na lavoura de café, onde sinto uma alegria e imenso prazer em trabalhar por me causar emoção, desde a florada até a colheita, e me transbordar de alegria, satisfação e orgulho por cultivar essa bebida tão preciosa e amada”.
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