"Denunciada violência na Docas de Santos". Assim o Estadão expunha, no dia 28 de agosto de 1975, uma das primeiras suspeitas de abusos contra funcionários no Porto de Santos, no litoral de São Paulo, o maior terminal portuário da América Latina. Cinco décadas depois, a concessionária que administra o negócio está sendo cobrada por colaborar com a ditadura militar (1964-1985).
Um inquérito civil aberto pelo Ministério Público Federal (MPF) chegou à conclusão de que o Porto de Santos foi palco de torturas, perseguições e violações de direitos trabalhistas. Pesquisadores da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) ajudaram a reconstituir o que aconteceu no terminal no auge da repressão. O trabalho está baseado em documentos e depoimentos.
"A administração portuária da época manteve vínculo estreito com os órgãos do regime militar durante todo o período de 1964 a 1985, coordenando a perseguição a trabalhadores e coibindo atividades sindicais", afirma o MPF.
A "parceria" informal entre a administração do Porto de Santos e o aparato de repressão aconteceu, segundo os investigadores, por meio de um setor específico, o Departamento de Vigilância Interna (DVI), criado em 1966.
Esse departamento era composto por funcionários comissionados do porto e oficiais da Marinha e, segundo o Ministério Público, trabalhava em "conluio" com o Departamento de Ordem Política e Social (Dops) de Santos e com delegacias de polícia da cidade.
"A troca de informações sobre empregados do porto trazia vantagens para os dois lados", explica o MPF. "Os órgãos de repressão tinham condições de agir com ainda mais força contra quaisquer movimentações dos trabalhadores que pudessem contrariar a ordem ditatorial. Ao mesmo tempo, o enquadramento de empregados nos crimes previstos na Lei de Segurança Nacional permitia à empresa dispensá-los por justa causa e eximir-se de pagar os direitos trabalhistas devidos."
Era nas dependências do DVI que funcionários seriam submetidos a sessões de tortura que, em alguns casos, se estendiam por horas, aponta a investigação.
Em outra frente, empregados que se engajavam em mobilizações por melhores salários e condições de trabalho eram demitidos arbitrariamente ou entravam na mira de inquéritos criminais, afirma o MPF.
O Ministério Público Federal estuda agora pedir reparação coletiva pelo apoio do Porto de Santos ao regime militar. As reivindicações estão sendo definidas em conjunto com o Ministério Público do Trabalho, pesquisadores, trabalhadores e vítimas da perseguição política no terminal. Um seminário está previsto na próxima sexta, 16, na sede do Sindicato dos Petroleiros do Litoral Paulista (Sindipetro-LP).
Segundo o MPF, a empresa, antiga Companhia Docas do Estado de São Paulo (Codesp), é sucessora da Companhia Docas de Santos (CDS), que engendrou um sistema de forte vigilância e repressão aos empregados a partir do golpe de 1964'.
A ideia é apresentar as demandas à Autoridade Portuária de Santos, atual controladora do porto, que sucedeu a Companhia Docas de Santos (CDS), concessionária que administrou o terminal durante a ditadura. Para o MPF, a empresa é "responsável pelo passivo histórico que as consequências do conluio com a ditadura representam".
"Embora a atual gestão do porto não tenha sido responsável pelos atos do passado, a estatal que controla o terminal é a mesma que o administra desde 1980. Ou seja, ao menos nos cinco últimos anos da ditadura, ela teve atuação direta na repressão aos trabalhadores e, portanto, deve indenizar ou compensar esse passivo histórico", defendeu em maio o procurador da República Ronaldo Ruffo Bartolomazi, titular do inquérito.
Procurada pelo Estadão, a Autoridade Portuária de Santos informou que manteve diálogo com procuradores do MPF e que se colocou à disposição para colaborar com as autoridades. "As decisões cabem à Justiça."
O empresário Cândido Guinle de Paula Machado foi um dos donos da Companhia Docas de Santos. Ele também fundou e financiou o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes) (1961-1972), entidade empresarial que ajudou a montar estratégias para depor João Goulart (1961-1964).
A investigação sobre a repressão no Porto de Santos faz parte de um esforço mais amplo do Ministério Público Federal para expor a associação entre grande empresas e o regime militar. Parte dos recursos usados para financiar as apurações veio da assinatura do termo de ajustamento de conduta da Volkswagen.
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