Nomes de quem visitou a primeira-dama Michelle Bolsonaro no Palácio da Alvorada, telegramas do Itamaraty sobre a prisão do ex-jogador Ronaldinho Gaúcho no Paraguai e de médico bolsonarista no Egito, a carteira de vacinação do presidente. É tudo sigiloso. Levantamento do Estadão mostra que entre 2019 e 2022 o governo Jair Bolsonaro impôs segredo de 100 anos a informações que deveriam ser públicas em ao menos 65 casos. Sob alegação de que os documentos continham informações pessoais, o governo rejeitou pedidos apresentados por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI) em 11 diferentes ministérios.
A lista inclui pedidos ao Exército sobre a apuração disciplinar do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello. O sigilo de 100 anos para o processo disciplinar do oficial expôs uma prática adotada pela gestão Bolsonaro que, segundo especialistas, vem dando mostras de estar mais preocupada em esconder do que abrir os arquivos do governo. "É o governo da opacidade generalizada", disse a gerente de projetos da Transparência Brasil, Marina Atoji. "São coisas que o governo não gostaria de mostrar."
Com a campanha presidencial, o tema virou mote para atacar Bolsonaro. Seu principal adversário, o petista Luiz Inácio Lula da Silva, tem criticado a medida em programas eleitorais, entrevistas e debates. "Vou acabar com o sigilo dele no primeiro mês. Ele fez o decreto do sigilo e vou decretar o fim. Quem não deve não teme", afirmou o petista durante evento no Rio neste domingo, 25.
Em abril, quando cobrado a revelar as visitas de pastores envolvidos no escândalo do Ministério da Educação (MEC), Bolsonaro reagiu com ironia: "em 100 anos saberá". Em agosto, com a candidatura à reeleição na rua, mudou o tom. Numa entrevista, tentou justificar a necessidade de informações sobre visitas ao Alvorada não serem públicas e disse que "não deve satisfação a ninguém".
Ao contrário do que diz Lula, Bolsonaro não editou decreto para impor o sigilo. Mas o segredo de 100 anos para os documentos relacionados a Pazuello fugiu de precedentes desde que a LAI foi sancionada, em 2011. Até o caso Pazuello, sindicâncias concluídas, incluindo de militares, podiam ser conhecidas por qualquer cidadão. Ao negar acesso a informações do general, o Exército usou como base o artigo 31 da LAI, que trata da proteção de dados pessoais e assegura sua preservação por uma século.
"Esse artigo serve para proteger civis e não pessoas públicas", disse a coordenadora do programa de acesso à informação da ONG Artigo 19, Júlia Rocha. Para ela, esse é um dos abusos que vêm sendo cometidos pelo governo em relação à transparência. O Estadão identificou outros casos. Em junho de 2021, um cidadão quis saber quem estava organizando encontros religiosos com Michelle na Granja do Torto e os nomes dos convidados. O pedido foi negado pelo mesmo motivo. O cidadão recorreu. Quando o caso foi parar na Controladoria-Geral da União (CGU), o Planalto alegou que não tinha conhecimento de eventos públicos na Granja, só privados. Já a lista de quem entrou e saiu passou a ser classificada como reservada. Nesse caso, o sigilo caiu de 100 para cinco anos.
Na lista de informações protegidas por 100 anos há cinco pedidos ao Ministério das Relações Exteriores. Entre eles o acesso às mensagens diplomáticas sobre os ex-jogadores Ronaldinho Gaúcho e Assis, presos no Paraguai em 2020 por uso de passaporte falso, e também sobre o caso do médico bolsonarista Victor Sorrentino, detido no Egito sob acusação de assediar uma vendedora. Nos dois casos, o Itamaraty negou o acesso. "Documentos relativos à prestação de assistência consular contém informações pessoais relativas à intimidade, vida privada, honra e imagem e, portanto, são protegidos", justificou.
Negativas
O maior número de documentos sob sigilo está no Exército. Pelo menos 21 pedidos foram negados com argumento de que são informações pessoais. Foram barrados pedidos como o que indagava quais ministros têm porte de arma ou o que pediu cópia da ficha funcional de Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flávio Bolsonaro acusado de operar esquema de rachadinha.
A Presidência impôs o segredo à carteira de vacinação de Bolsonaro, ao teste de covid-19 feito pelo ex-assessor e coronel Élcio Franco e até aos motivos que levaram o governo a barrar a nomeação da médica Luana Araújo para combater a pandemia. "Em casos que tratam da vida de cidadão comum até faria sentido proteger a informação, mas estamos falando de pessoas públicas e politicamente expostas. A própria lei fala que é pública a informação que tem flagrante interesse público", disse Marina Atoji. "No mínimo, são respostas erradas. Mas, na pior das hipóteses, e é o que tem sido verificado, é caso de má-fé".
Responsável por monitorar a transparência no governo federal, a CGU nega abuso ou mesmo erros na aplicação do sigilo. "Há um evidente equívoco nas narrativas que mencionam decretação de sigilo de 100 anos no Poder Executivo", afirmou, em nota. A CGU sustenta que tem caído a proporção de pedidos negados com a justificativa de as informações serem "pessoais". Em 2012, era de 43,9% e neste ano está em 16,19%, segundo a CGU.
Como mostrou o Estadão, entre 2019 e 2021, 26,5% dos pedidos de informação negados pelo governo federal tiveram como justificativa a necessidade de sigilo da informação. A taxa é duas vezes maior do que a da gestão de Dilma Rousseff (PT) e quatro pontos porcentuais maior do que a do governo Michel Temer (MDB).
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