O presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou 487 decretos entre 1º de janeiro e 1º de dezembro deste ano - o mesmo número de seu antecessor, Jair Bolsonaro. Um quinto desses decretos, o equivalente a 101 atos, focou em definir a estrutura regimental e o quadro de cargos de confiança em órgãos e ministérios do governo. Parte deles também definiu o uso dos prédios públicos e as atribuições dos ministros da nova gestão. Ou seja: em sua volta ao Palácio do Planalto, Lula se valeu da sua prerrogativa para gerir a burocracia do Estado em vez de criar novos programas ou conceder recursos para segmentos da economia. Os decretos são instrumentos de uso exclusivo do chefe do Executivo, e servem para regulamentar leis, emitir normas para a administração pública e criar políticas setoriais sem a necessidade de negociações custosas com o Congresso, sobretudo numa conjuntura em que não há maioria consolidada. A Casa Civil da Presidência da República foi procurada, mas não se manifestou até a publicação deste texto. Um exemplo das mudanças internas promovidas pelo petista foi definir as competências da Agência Brasileira de Inteligência (Abin) após a sua transferência - via medida provisória - do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) para a Casa Civil. O Congresso agiu para devolver o controle da área aos militares, mas Lula vetou as mudanças e manteve a Abin sob a tutela do ministro da Casa Civil, Rui Costa. Fábio Andrade, professor de políticas públicas na Escola Supeior de Propaganda e marketing (ESPM), avalia que os decretos destinados à organização dos ministérios e à definição de cargos cumprem a função de tentar viabilizar o sucesso das iniciativas do governo. "Os resultados das políticas públicas estão intimamente ligados à máquina que se vai operar", diz. Ele pondera, porém, que "uma leitura mais rápida e menos dialogada com a sociedade pode passar uma impressão ruim de que está se retomando a máquina (pública) única e exclusivamente para a distribuição de cargos". "O governo deveria ter uma comunicação com a sociedade para justificar o que está acontecendo", diz.
Se, por um lado, o primeiro ano do atual governo serviu para "arrumar a casa", algumas políticas anunciadas como vitrine da nova gestão de Lula ficaram estagnadas. O petista editou apenas oito decretos de homologação de terras indígenas. Auxiliares do Ministério dos Povos Indígenas e do Palácio do Planalto atribuem a retomada lenta das demarcações ao processo burocrático desses casos dentro da estrutura governamental, ainda que a promessa de Lula seja zerar as demarcações pendentes ainda neste mandato. Em áreas que exigem menos estudos e pareceres técnicos, os resultados, porém, também não foram expressivos. O Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), por exemplo, teve apenas sete decretos especificando as áreas econômicas que seriam privilegiadas pela atuação conjunta com o governo. Os programas e as reformas são geralmente usados como vitrines para mostrar resultados e expor "marcas" aos eleitores. Na área de políticas públicas, na qual o presidente não depende de apoio parlamentar, Lula agiu de forma moderada combinando a criação de algumas iniciativas com a retomada de outras já popularizadas em governos anteriores do PT. Foram criados via decreto 15 novos programas federais, como as ações afirmativas na administração pública, o combate à violência contra a mulher e a iniciativa pró-catadores para a reciclagem popular. Esse rol abarca também o "carro-chefe" da gestão Lula 3: o novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Além disso, 25 atos foram editados para regulamentar e alterar programas já existentes, como a Farmácia Popular. Em comparação com o início da gestão Lula, o ex-presidente Jair Bolsonaro criou seis novos programas no primeiro ano de governo e fez alterações em outros três já em curso. A principal iniciativa do antecessor de Lula no início de mandato foi criar o programa de escolas cívico-militares - medida que acabou revogada via decreto pelo petista neste ano. Lula, por sinal, destinou sete decretos à revogação de atos do governo Bolsonaro, como o programa "Abrace o Marajó", de autoria da ex-ministra dos Direitos Humanos Damares Alves.
FrequênciaO professor de ciência política da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Sergio Praça defende que "decretos são medidas que deveriam ser usadas com menos frequência", sobretudo quando se trata de criar programas. "É desejável que toda formulação de política pública, projeto ou programa passe pelo Legislativo de alguma maneira", afirmou. Lula assinou neste ano 40 decretos voltados à criação e organização de conselhos federais. Esses fóruns foram frequentes em mandatos anteriores do petista para atrair a participação popular. No decorrer dos anos, porém, esse modelo foi alvo de críticas pela pouca efetividade de atuação. Nos seus dois primeiros governos, entre 2003 e 2010, foram montados 15 conselhos. Somente neste ano já foram instituídos 10 grupos, que discutem temas que vão do combate à corrupção dentro do governo aos direitos das pessoas LGBTQI+. Levantamento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostra que Lula, em seus dois primeiros governos, criou mais que o dobro de conselhos do que os antecessores Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso juntos. Os três ex-presidentes criaram 11, um mais do que o atual chefe do Executivo em seu terceiro mandato.
Outra marca dos decretos editados por Lula foi a constante criação de grupos de trabalho (GTs). Somente neste primeiro ano de governo foram 41 atos deste tipo, que estão no DNA "assembleísta" dos governos do PT. Quando o petista assumiu a Presidência pela primeira vez em 2003, foram criados 55 grupos de trabalho em 15 meses. Alguns grupos criados em 2023 apresentaram propostas que foram convertidas em ações de governo, como o GT que elaborou a política de valorização do salário mínimo. Em agosto deste ano, Lula sancionou a lei que prevê aumento permanente do valor mínimo que deve ser pago aos trabalhadores. Outro exemplo de GT bem sucedido foi o que elaborou o plano nacional de igualdade salarial entre mulheres e homens. Lula editou um decreto, em novembro, que regulamenta a lei idealizada pelo governo para obrigar as empresas com mais de cem empregados a divulgar a cada seis meses um relatório de transparência salarial e critérios remuneratórios. Houve, no entanto, GTs criados com a intenção de ouvir demandas de grupos sociais e estruturar políticas públicas, mas que acabaram sem dar respostas efetivas ao que foi proposto. Foi assim no GT criado por Lula, sob a responsabilidade do Ministério do Trabalho e Emprego, para discutir a regulação dos aplicativos de entrega. Foram quatro meses de discussões, entre maio e setembro, que não resultaram no aguardado projeto de lei de autoria do governo que iria regular a relação entre as empresas de aplicativos e os entregadores e motoristas. A expectativa era de que a proposta fosse enviada em outubro, o que não ocorreu. Além disso, pessoas que participaram do GT se queixaram de umas das versões do texto elaborado pelo Ministério do Trabalho por conter ideias que não teriam sido debatidas e validadas internamente. Procurado, o Ministério do Trabalho não se manifestou sobre os resultados o GT até a publicação deste texto.
IdeologiaO professor Andrade avalia que a constante criação de GTs por Lula está relacionada com o aspecto "mais ideológico do grupo que ocupa a Presidência da República". Ele assinala que os estudos de políticas públicas apontam que esses fóruns são peça fundamental para evitar a necessidade de fazer correções nas políticas, sobretudo quando envolvem mais de um ministério. "Parte da literatura de ciência política avalia que (os grupos de trabalho) tornam os processo mais lentos, porém diminuem déficits democráticos", afirmou. Os decretos de Lula ainda contaram com atenção especial à retomada do protagonismo do Brasil nas relações exteriores. O presidente assinou 25 decretos relacionados a acordos internacionais e outros 15 que tratam da burocracia do País no exterior, como a validação de tratados, a definição de regras diplomáticas e o remanejamento de consulados e escritórios. Outras três áreas que acabaram recebendo atenção diferenciada foram a economia (25), o meio ambiente (11) e a defesa (12). As informações são do jornal
O Estado de S. Paulo.
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