A Biblioteca Pública do Paraná (BPP) tem uma das seções de Braille mais longevas e amplas (mais de 30 mil títulos, entre livros, audiolivros, e-books, revistas, boletins e folhetos em versão adaptada) do País. Desde 1969, oferta títulos para cegos e pessoas com visão reduzida, e sempre foi precursora em utilizar recursos para aumentar seu acervo. A reportagem desta semana da série “Paraná, o Brasil que dá certo” mostra um pouco do trabalho deste departamento, considerado referência na área de acessibilidade.
Atualmente existem cerca de 150 leitores cadastrados na seção e, mensalmente, são feitos cerca de 130 empréstimos. São ofertadas também revistas, boletins e folhetos (nacionais e internacionais) em versão adaptada.
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Cleomira Ferreira Burdzinski, coordenadora da Seção, conta que a BPP trabalha há 37 anos com o livro falado. “Eu uso a expressão 'livro falado' porque quando nós começamos não tinha e-book e esses outros termos. Então, continuamos nos referindo desta forma porque foi assim que começamos, com um orador pessoal para pessoa com deficiência. Depois começamos a gravar em fita cassete, aí passamos para o CD, foi para o pen-drive e hoje temos o livro digital. Fomos precursores nesse trabalho”, afirma.
O setor ainda oferece palestras e cursos de capacitação, cinema, óculos especiais e serviço personalizado de adaptação de livros para todo o País.
Em outubro do ano passado, o departamento criou o projeto Cine Inclusivo, para estimular e atrair o público interessado em filmes audiodescritos. Por meio de agendamento, os usuários da BPP podem assistir a títulos de diferentes gêneros cinematográficos selecionados pela equipe da seção.
Está disponível também, mediante agendamento, o acesso a aparelhos de visão artificial. São dois óculos OrCam MyEye, que fotografam textos, escaneiam e os transformam em áudio. O Paraná ainda é um dos poucos estados a proporcionar ao público esta solução inovadora, que também contempla analfabetos e permite a leitura e a identificação de pessoas pelos rostos, entre outras funcionalidades.
A seção ainda é pioneira na oferta de um serviço especializado de transformação de qualquer livro, mediante solicitação dos leitores, em audiolivro ou livro digital. “Temos este diferencial em relação aos demais estados. Um leitor de qualquer parte do estado ou do Brasil pode nos enviar um exemplar impresso e aqui nós tornamos esta obra acessível para ele”, explica.
Maurício Danderter, funcionário da BPP há 20 anos, é quem se ocupa desta função. Ele explica que utiliza um escâner especial para a transformação da obra. Depois, é feito um amplo trabalho de correção para que o livro receba, só assim, uma voz digitalizada.
“Há 20 anos eu vi uma reportagem na televisão falando sobre a Seção Braille da BPP, contando sobre o trabalho de alguns voluntários que gravavam livros para torná-los acessíveis ao público cego. Eu gostei muito, vim prestar um trabalho voluntário e continuo aqui até hoje”, diz.
ALÉM DOS LIVROS
Um dos aspectos que mais orgulha os funcionários e usuários da Seção de Braille da BPP é que o departamento é muito mais do que um simples local de empréstimos de livros, periódicos e filmes. Com mais de meio século de vida, o espaço se tornou referência ao público que atende porque funciona como um hub de informações importantes aos cegos, presta pequenos serviços como a impressão de panfletos ou pequenos textos em Braille numa impressora especial. Até livros infantis ganham versão gratuita graças ao equipamento.
O espaço também oferta bengalas para qualquer cego que porventura tenha tido algum acidente com a sua e que precise, de forma emergencial, de uma emprestada. Além disso, são mantidos diferentes convênios e parcerias para promoção de cursos, capacitações e encaminhamentos a serviços públicos disponíveis para este público.
Para Luiz Felipe Leprevost, diretor da Biblioteca Pública do Paraná, a grandiosidade da Seção Braille da BPP é fruto do trabalho dedicado dos funcionários. “Nossa equipe é feita por pessoas muito generosas, muito dedicadas, que têm um conhecimento profundo sobre o assunto, que acolhem a comunidade de modo geral e promovem essa troca, essa interação que se tornou muito rica, muito importante para Curitiba, para o Paraná e para o Brasil”, afirma.
"Acho que foi isso que construiu o setor, como um alicerce de afeto, carinho, de realmente promover a inclusão e acessibilidade, para que as pessoas venham à biblioteca e se sintam confortáveis", acrescenta.
Há 10 anos, de forma ininterrupta, também são oferecidos no espaço público estadual cursos de Braille e Soroban – um ábaco japonês utilizado como tábua de contar e essencial para cegos aprenderem matemática. Eles têm duração de 30 horas, divididas em uma aula de três horas por semana, por cerca de três meses. Além de capacitar professores, os cursos são abertos à população em geral.
Dados do último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), de 2010, apontam que existem mais de 6,5 milhões de pessoas com deficiência visual no país. Para este público, o Braille – um sistema de escrita tátil criado pelo francês Louis Braille em 1824 e melhorado por ele mesmo em 1837 – permite acesso a todo tipo de livros, periódicos e conteúdos audiovisuais adaptados.
A professora Lilian Merege Iglia é especialista em atividade motora adaptada e trabalha com orientação e mobilidade de pessoas com deficiência visual. Ela ensina pessoas que perderam a visão a andar de bengala. Lilian começou a usar a Seção Braille da BPP como parte da orientação que presta a seus alunos. Para ela, o trabalho do departamento é muito significativo e importante para a comunidade.
“Geralmente eu dou aula próximo às casas dos meus alunos, mas também dou muita aula na Rua XV de Novembro, no Centro de Curitiba, para usar a Biblioteca como exemplo. Gosto de apresentar a seção para eles como um lugar seguro, onde vão conhecer muita gente interessante, ter acesso a informações. Para mim, esse lugar é tão grandioso quanto a história de Louis Braille”, afirma.
Em novembro passado, foi nos corredores da BPP que a professora Lilian lançou seu livro "Fiquei Cego, e Agora?", com relatos de histórias de vida testemunhados em seus mais de 25 anos de trabalho na área de educação e acessibilidade.
VIDA CULTURAL
O bancário Everson da Costa Martinho perdeu a visão em 2000 aos 15 anos, resultado de um descolamento de retina. Depois de quase dois anos se submetendo a diferentes tipos de cirurgias, a família percebeu que não havia o que fazer para recuperar os olhos. “Nessa época começamos a pesquisar como seria possível nos adaptar a essa realidade”, relembra.
Ele se matriculou numa escola especializada, aprendeu Braille, a andar de bengala na rua e, em 2004, se candidatou a uma vaga de estagiário na BPP. Começou trabalhando como operador de som na Seção Braille, gravando as leituras dos voluntários que adaptavam livros em fita cassete.
“Eu era responsável por estas gravações, depois fazia cópia das fitas. Até então eu não costumava ler, meu negócio era jogar bola, pingue-pongue. Mas frequentando a Biblioteca como estagiário fui adquirindo este hábito”, afirma. “O estágio e a leitura me permitiram conhecer outras culturas, ter acesso a novas informações, além de conhecer gente de todas as idades. Foi uma experiência incrível”.
Conhecendo mais pessoas com a mesma deficiência, ele percebeu que a cegueira não era um limitador, então começou a trabalhar na organização de campeonatos de xadrez, dominó, montou um grupo teatral formado só por pessoas com deficiência visual e, de um simples estágio, a seção se tornou uma grande comunidade.
“Foi muito importante na minha vida porque através destas conexões conheci a minha esposa”, diz Martinho. Juntos há 18 anos, o casal tem um filho de 5 anos chamado Miguel.
Hoje, além de presidir a Além da Visão – uma associação de apoio e inclusão a pessoa com deficiência visual – ele trabalha como bancário numa instituição financeira há 17 anos. “Através da Seção Braille eu pude trabalhar em outros lugares também, conhecer outras pessoas, me desenvolver como pessoa, o meu caráter, os valores da minha vida, além de ter sido o lugar onde conheci o grande amor da minha vida, a minha esposa. Esta seção é muito importante para mim”, completa.
Já o historiador e servidor público Lucas Antônio Ferreira de Oliveira, que também foi estagiário na Seção Braille da BPP, tem uma ligação diferente com o departamento. Cego de nascença, ele frequenta o setor desde os 5 anos, quando era levado pelos pais para a biblioteca. “Frequentei este espaço a vida toda, até surgir a oportunidade de trabalhar na seção”, afirma.
“A minha história nesse espaço se confunde com a história da minha própria vida porque sempre gostei de ler, mesmo antes de frequentar a Biblioteca. Sempre gostei de ler e ouvir histórias, conhecer realidades diferentes. Quando eu trabalhei aqui foi um privilégio muito grande. Foi aqui que aprendi a fazer a catalogação de livros, entender o funcionamento de uma biblioteca”, complementa.
Atualmente, Oliveira é funcionário público no município de Contenda, na Região Metropolitana de Curitiba, onde é responsável pela catalogação de livros na biblioteca da cidade. “Hoje utilizo toda a informação e toda bagagem intelectual que aprendi nessa nova biblioteca”, diz.
Como nasceu cego, ele conta que nunca teve que passar pelo processo de aceitação que acomete quem perdeu a visão. Esta condição permitia que ele trabalhasse com a aceitação de muitos usuários de biblioteca. “Muitos chegavam até aqui e a gente conversava, explicava que, mesmo sem a visão, a vida segue. Que o cego é tão capaz quanto qualquer outro, que a vida da pessoa com deficiência é boa. Eu sempre fui visto, às vezes até à revelia da minha vontade, como um exemplo, porque trabalhava, estudava, tinha autonomia, e porque a cegueira não me limita em nenhum aspecto”, completa.
Para ele, a Seção Braille sempre foi mais do que um simples local de empréstimos de livros. “Não temos usuários na biblioteca, temos amigos”, arremata.
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