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Parte das comunidades para tratar usuários impõe religião e tem viés manicomial

Uma pesquisa divulgada nesta segunda-feira, 25, pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) critica duramente as comunidades terapêuticas (CTs) - entidades que recebem dependentes químicos para tratamento - no Estado do Rio de Janeiro. Segundo

Fábio Grellet (via Agência Estado)

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Escrito por Fábio Grellet (via Agência Estado)
Publicado em 25.07.2022, 22:10:00 Editado em 25.07.2022, 22:13:35
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Uma pesquisa divulgada nesta segunda-feira, 25, pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC) critica duramente as comunidades terapêuticas (CTs) - entidades que recebem dependentes químicos para tratamento - no Estado do Rio de Janeiro. Segundo o trabalho, muitas desses grupos, financiados com dinheiro público, reproduzem a lógica dos manicômios, o que contraria a Reforma Psiquiátrica.

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Baseadas na abstinência, no isolamento social e na rotina religiosa, essas instituições são administradas em sua maioria por líderes religiosos, sobretudo evangélicos. O estudo aponta ainda que, em alguns casos, há resistência à ação de profissionais com visões alternativas.

"O que observamos é que, apesar (as CTs) de terem os certificados exigidos por lei, muitas irregularidades permanecem", afirma Paula Napolião, coordenadora da pesquisa. "É o caso de CTs que acolhem (usuários) fora da faixa etária permitida ou reproduzem violências de gênero, por exemplo. As mudanças que ocorreram nas CTs habilitadas para o financiamento foram escassas e superficiais. O cerne do trabalho dessas instituições segue sendo a reforma moral do indivíduo através da religião."

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A pesquisa aponta quais são e como operam as comunidades terapêuticas do Rio habilitadas a receber recursos do poder público. Também mostra como os administradores dessas entidades respondem às exigências legais para obter certificações e concorrer a editais para receber verbas.

Por lei, para funcionar, uma comunidade terapêutica precisa de certificados do Conselho Municipal Antidrogas e da Vigilância Sanitária. Mas o estudo mostra que, em vez de fiscalizar as CTs, as instituições públicas passaram a ser parceiras dessas entidades.

Histórico

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As comunidades terapêuticas existem no Brasil desde a década de 1970. Cresceram de forma significativa a partir da década de 1990. Não têm vínculos com o Sistema Único de Saúde nem com o Sistema Único de Assistência Social. São alvo frequente de denúncias de violações de direitos humanos.

Em 2011, desde o lançamento do programa federal "Crack, e´ possível vencer", durante a presidência de Dilma Rousseff, o governo passou a financiar vagas em comunidades terapêuticas para "pessoas com transtornos decorrentes do uso de substâncias psicoativas".

Mas foi em 2019, no governo Jair Bolsonaro (PL), que elas alcançaram o maior investimento desde sua criação. Foram R$ 560 milhões repassados via governos federal, estaduais e municipais.

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No início de 2018, o governo federal financiava 2,9 mil vagas. Em dezembro de 2021 esse número saltou para 10.657. A meta para 2022 era chegar a 24.320 vagas. No município do Rio, foram destinados mais de R$ 3 milhões para o financiamento de 450 vagas em comunidades terapêuticas de 2019 a 2021.

O estudo mapeou as comunidades terapêuticas existentes no Estado do Rio. Foram identificadas 109 unidades em 16 municípios. São 38 na capital. Foram entrevistados 24 dirigentes de CTs e três funcionários de órgãos reguladores e fiscalizadores. Os servidores são ligados à Vigilância Sanitária da capital fluminense, à Subsecretaria de Prevenção à Dependência Química do Estado do Rio e à Coordenadoria de Cuidado e Prevenção às Drogas do município do Rio.

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Também foram mapeados todos os editais lançados pela Prefeitura do Rio para financiamento de vagas em Comunidades Terapêuticas. Durante três meses, foram feitas visitas a nove comunidades terapêuticas na cidade do Rio. Uma é católica de filiação carismática, e as outras, evangélicas, de diferentes denominações. Quatro delas são administradas diretamente por pastores.

Isolamento

Localizadas em sua maioria em locais de difícil acesso, as CTs replicam a lógica manicomial de isolamento, aponta o estudo. Nesses espaços, as substâncias psicoativas são encaradas como um grande "mal". Deve ser exterminado por meio da abstinência, não só de drogas, como de sexo e outros prazeres "mundanos".

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O tratamento nas CTs é definido como "submissão" por uma das técnicas entrevistadas. Isso contraria a reforma psiquiátrica e a Política de Atenção Integral aos Usuários de Álcool e outras Drogas, em vigor desde 2003.

O estudo mostra que alguns responsáveis técnicos pelas CTs se opõem ao acompanhamento dos usuários por psicólogos dos Centros de Atenção Psicossocial Álcool e outras drogas (CAPSad).

O objetivo dessa ação seria evitar contato com visões alternativas à abstinência. Ao contrário das Comunidades Terapêuticas, os CAPSad fazem parte do Sistema Único de Saúde (SUS). Há anos estão em situação de sucateamento. devido à falta de investimento público, diz a pesquisa.

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Os centros surgiram com uma abordagem múltipla. Ela não prioriza o isolamento e a abstinência, mas a sociabilidade e a redução de danos.

Religião

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A maioria das comunidades terapêuticas é cristã. Uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) sobre os perfis das CTs no Brasil mostrou que 40% são de orientação pentecostal; 27% são católicas. Há ainda 7% evangélicas de missão (luterana, presbiteriana, congregacional, batista, metodista ou adventista).

"Apesar de gestores de CTs caracterizarem o trabalho feito nesses espaços como 'desenvolvimento da espiritualidade', o que se vê na prática é a imposição da fé cristã", diz a pesquisadora Giulia Castro.

"O sucesso do 'tratamento' proposto nas CTs depende da aderência a uma rotina de participação em cerimônias religiosas. Isso é inaceitável, porque uma política pública precisa ser laica e o uso problemático de drogas precisa ser encarado como uma questão de saúde pública".

Outro lado

Em nota divulgada na tarde desta segunda-feira, 25, a Secretaria Municipal de Saúde do Rio de Janeiro afirmou que "não tem nenhuma forma de contratualização com comunidades terapêuticas". Segundo a pasta, o planejamento para cuidar de pessoas que têm sofrimento causado pelo uso de drogas é a "expansão da rede de atenção psicossocial, notadamente as equipes de Consultório na Rua, centros de atenção psicossocial álcool e outras drogas (CAPSad III) e Unidades de Acolhimento Adulto (UAA), respeitando os princípios do cuidado em liberdade e o apoio às pessoas em situação de vulnerabilidade psicossocial".

Na tarde desta segunda-feira a reportagem também consultou a Secretaria Estadual de Saúde, que apenas às 17h52 informou que a política para comunidades terapêuticas não está sob sua alçada, e sim sob a gestão da secretaria de Estado de Desenvolvimento Social e Direitos Humanos. Consultada apenas a partir daí, a pasta não havia se manifestado até a publicação desta reportagem.

Também consultados pelo Estadão, o Ministério da Saúde e a Federação das Comunidades Terapêuticas do Estado do Rio de Janeiro não haviam se manifestado até a publicação desta reportagem.

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