"Eu vivi um luto de uma semana. Fiquei chorando e daí eu entendi que eu precisava lutar por ele", conta a administradora Raquel Berg, de 39 anos. Há menos de um mês, seu filho Henrique, de 1 ano, recebeu o diagnóstico de atrofia muscular espinhal (AME), uma doença genética rara que afeta os movimentos do corpo e pode até ocasionar a morte.
No caso de Henrique, o diagnóstico foi de AME tipo II e os sinais de fraqueza muscular começaram a aparecer entre os seis e oito meses, quando ele atrasou para sentar e não conseguia engatinhar. Como os danos motores causados pela condição são irreversíveis e atrapalham os marcos de desenvolvimento de uma criança, o ideal é iniciar o tratamento logo após o diagnóstico ser feito. Assim que teve a confirmação da doença, Henrique recebeu a prescrição do medicamento zolgensma, uma terapia genética inovadora conhecida por ser o remédio mais caro do mundo - cerca de R$ 6 milhões por dose.
Por enquanto, o menino não conseguiu acesso à terapia nem pelo plano de saúde nem pelo SUS. Ambos fornecem a medicação apenas para bebês com até seis meses e com AME tipo I (veja quadro). No SUS, no entanto, o remédio não está sendo ofertado nem nesses casos por causa de um atraso de mais de um ano em um acordo entre o ministério e a farmacêutica Novartis, fabricante da terapia (leia mais abaixo).
Agora, Raquel corre contra o tempo na Justiça para obrigar o sistema público a garantir o tratamento antes do agravamento do quadro do filho. "Dia 27 (de junho) a gente recebeu a confirmação (do diagnóstico) e aí começou toda a correria", conta ela sobre o caminho que tem percorrido para conseguir o tratamento prescrito para seu filho.
Simultaneamente, a administradora abriu uma campanha online para arrecadar os mais de R$ 6 milhões do custo do zolgensma. Até agora, ela arrecadou cerca de R$130 mil, dinheiro que será doado para outras crianças que lutam pelo medicamento caso Henrique consiga uma liminar para tratamento no SUS.
O caso de Henrique ilustra o drama das famílias de crianças com AME. O primeiro desafio é o diagnóstico, já que a doença é rara e nem todos os profissionais estão treinados para reconhecer os sintomas. O acesso ao tratamento é outra grande dificuldade, pelo alto custo dos medicamentos e pela necessidade de início imediato das terapias. A doença, que atinge 1 a cada 100 mil pessoas, é causada por uma mutação genética e considerada degenerativa, pois evolui com o passar do tempo, levando o paciente a limitações de movimento.
Isso interfere em gestos que vão desde a mobilidade corporal até funções vitais, como a respiração e a deglutição. Os danos motores causados pela doença são irreversíveis, mas o remédio evita que a mutação continue prejudicando a movimentação, por isso a urgência na administração do remédio, para que a criança tenha o mínimo possível de sequelas. O zolgensma é administrado em apenas uma dose, na qual um vírus insere no organismo do bebê uma cópia funcionante do gene afetado pela doença.
Em 2020, a Anvisa aprovou o uso do zolgensma no Brasil para crianças de até dois anos; em 2022, o medicamento foi incorporado ao SUS; e, em 2023, entrou no rol de cobertura dos planos de saúde, mas, em ambos os casos, somente crianças de até seis meses de idade, com AME tipo I e que estejam fora de ventilação invasiva acima de 16 horas por dia são elegíveis ao tratamento.
A AME é classificada em tipos diferentes de acordo com o grau de comprometimento dos músculos e pela idade em que surgem os primeiros sintomas. No caso do Henrique, que tem AME tipo II, a fraqueza muscular é mais moderada em comparação com a AME tipo I. "Ainda assim é grave, mas o paciente não tem a necessidade obrigatória e rápida de suporte respiratório", explica Diogo Haddad, neurologista do Hospital Alemão Oswaldo Cruz e que não está envolvido no caso do paciente.
Mesmo não estando dentro do quadro previsto para receber o zolgensma pelo SUS, Henrique recebeu um bom prognóstico dos médicos. "Disseram que ele tem bastante resposta motora, então o prognóstico é excelente. Inclusive, se ele tomasse a medicação hoje, teria chance de, aos 3 anos, por exemplo, já estar andando porque, pelos testes, ele ainda tem reflexo motor e conseguiria recuperar isso com fisioterapia", diz Raquel.
Na tentativa de conseguir o tratamento, ela entrou com uma ação judicial contra o Ministério da Saúde. Por enquanto, o caso de Henrique aguarda o parecer técnico que dará suporte à decisão do juiz. "Eu estou tentando acelerar ao máximo, porque a perda (motora) dele foi muito grande. Eu tenho uma foto dele de maio com as perninhas grossas, levantando e tudo. E agora está fininha, murchinha, já atrofiada, ele não tem força. Ele vai pegar um brinquedo e cansa, derruba", conta.
No entanto, o processo pode demorar. De acordo com o advogado do caso, Antônio Teles, mesmo após a concessão da liminar da justiça para que o SUS forneça o medicamento à criança, o cumprimento da sentença pode levar meses. Ele afirma que já teve sucesso em 10 dos 12 casos que entrou com pedido judicial pelo fornecimento do zolgensma, nove deles de bebês com AME tipo I que já tinham mais de seis meses de idade e um caso de AME tipo II.
Ao Estadão, o Ministério da Saúde afirmou que "embora a proposta de incorporação e a bula do Zolgensma indiquem uso em pacientes de até dois anos, os estudos disponíveis mostraram sucesso apenas em crianças de até seis meses sem ventilação mecânica invasiva permanente".
Segundo Haddad, neurologista do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, os estudos de efetividade do zolgensma foram realizados em crianças com AME tipo I, que é a manifestação mais grave e mais comum da doença.
Ensaios clínicos estão sendo realizados no momento sobre seu uso em pacientes com AME tipo II, caso de Henrique. "Quanto mais você tiver de dano já causado pela doença, dificilmente você vai ter uma reversão. A ideia do uso da medicação, principalmente de terapia gênicas, é usar o mais precocemente possível", explica o especialista.
Ministério da Saúde atrasa oferta do medicamento no SUS
Mesmo se o quadro de Henrique estivesse dentro dos critérios exigidos para tratamento na rede pública, a família teria de judicializar o pedido. Isso porque, apesar de incorporado no sistema em 2022 com prazo limite para oferta em junho de 2023, o medicamento ainda não foi disponibilizado pela União. A oferta da terapia gênica pelo SUS está condicionada a um acordo de compartilhamento de risco com a farmacêutica Novartis, que, até hoje, não foi firmado.
O acordo prevê 3% de desconto no valor das vendas do remédio para a compra do governo, além de garantir que a União pague o tratamento ano a ano, com direito a interromper o pagamento caso o paciente não demonstre melhora.
Procurado, o ministério afirmou apenas que o remédio foi incorporado condicionado ao acordo, mas não informou previsão para assinatura do termo. Já a Novartis informou que enviou a segunda versão da minuta contratual do acordo ao ministério em 26 de fevereiro de 2024 e aguarda o retorno para dar prosseguimento à assinatura.
Enquanto isso, sem o acordo firmado, o SUS não fornece o medicamento nem nos casos previstos, o que exige que as mães levem o problema à Justiça. De acordo com o Ministério da Saúde, entre 2020 e 2024, a pasta recebeu 282 ações judiciais solicitando o zolgensma, das quais 191 foram atendidas.
Além do atraso no início do tratamento dos pacientes com AME, que leva a maior perda motora, há também perda financeira para a União. Quando o governo é obrigado comprar o zolgensma por decisão judicial, acaba pagando o valor cheio do medicamento, sem o desconto previsto no acordo com a Novartis.
Sem o zolgensma, Henrique pode receber dois tratamentos medicamentosos disponíveis no SUS: o spinraza (nusinersena), previsto no Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas desde 2019, e o risdiplam, incorporado em 2022 no SUS. Como não atuam na mutação genética, tanto o risdiplam quanto o spinraza devem ser utilizados por toda a vida, diferente do zolgensma. Cerca de 15 dias após o diagnóstico de AME, Henrique começou a tomar o risdiplam.
Dificuldade de diagnóstico
Segundo Raquel, seu filho sentia incômodos gastrointestinais e também costumava apresentar doenças respiratórias. No entanto, por serem problemas corriqueiros, não levantaram a suspeita de uma doença genética de início. Na época, os pais e médicos cogitaram a presença de alergias alimentares e acreditaram que a ida à creche cedo o deixava mais exposto às infecções por vírus e bactérias.
O sinal que chamou mais a atenção dos pais foi o atraso para que a criança conseguisse sentar. "Ele era mais molinho e foi sentar com oito meses, então atrasou dois meses. Chegou aos dez meses e ele não engatinhava nem nada. A escola reportou inclusive", conta a mãe. Em consulta com um ortopedista, nenhum problema físico foi encontrado além da falta de tônus muscular, que levou o menino a iniciar sessões de fisioterapia.
Apenas quando estava prestes a completar um ano, em um novo quadro de problema respiratório, tremores nas mãos de Henrique levantaram a suspeita de uma médica, que pediu a internação para a realização de exames.
"Ela viu que as pernas dele não tinham tanto reflexo motor, fez eletroencefalograma, fez ecocardiograma, fez tomografia da coluna, da cabeça, exame de sangue e de proteína. E todos os exames físicos eram normais. Fisicamente, não tinha nada que explicasse", afirma Raquel, que passou a procurar as possibilidades na internet. Depois de descartar outras doenças, o bebê fez o teste genético que confirmou o diagnóstico de AME tipo II. "Eu já tinha lido sobre a doença e aí fiquei sem chão", diz.
A depender do tipo de atrofia muscular espinhal, o bebê pode apresentar sinais desde a gestação. Todos os indicativos estão relacionados à falta de movimentação, segundo Haddad. "Você pode fazer teste genéticos durante a gravidez, se você notar esses padrões (de baixa movimentação fetal)", explica Haddad. De acordo com o neurologista, em bebês com AME tipo I, que a fraqueza muscular é bastante acentuada, o diagnóstico pode ser feito logo no nascimento frente a indicativos respiratórios e cardíacos.
Além disso, há a possibilidade de detectar a mutação genética que causa a atrofia muscular espinhal no teste do pezinho, realizado entre o terceiro e quinto dia de vida da criança para detectar, por meio do sangue, doenças graves. A Lei 14.154/21, sancionada em 2021, ampliou de 6 para 53 o número de doenças que podem ser rastreadas pelo exame. Entre as novas detecções, está a AME. No entanto, a norma prevê que a doença entre na lista dos diagnósticos feitos pelo teste na quinta e última etapa de implementação da lei.
Até agora, isso não aconteceu na prática. Alguns estados, como o Distrito Federal e Minas Gerais, já implementaram a atualização por meio de legislações próprias. Em São Paulo, Estado de Henrique, há um Projeto de Lei (538 /2020) em trâmite que busca tornar obrigatória a realização da triagem para AME no teste do pezinho.
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