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Cirurgião narra como conheceu Clarice Lispector e inspirou narrador de 'A Hora da Estrela'

PAULO WERNECK* SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Tudo começou com um sim. O jovem auxiliar do centro cirúrgico entrou no quarto e encontrou a paciente deitada, sozinha. "Ela estava aflita, não estava satisfeita de estar na clínica. Era de uma solidão assustado

Da Redação

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Escrito por Da Redação
Publicado em 16.12.2017, 08:35:00 Editado em 16.12.2017, 08:35:09
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PAULO WERNECK*

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SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Tudo começou com um sim. O jovem auxiliar do centro cirúrgico entrou no quarto e encontrou a paciente deitada, sozinha. "Ela estava aflita, não estava satisfeita de estar na clínica. Era de uma solidão assustadora", conta ele.

"Da minha parte foi um encantamento nota 10", avalia ele hoje, 43 anos depois. "Se da parte dela foi encantamento nota 4, para mim está muito bom."

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Provavelmente na mesma manhã, Clarice havia se submetido a uma zetaplastia, cirurgia que alivia sequelas cicatriciais em vítimas de queimaduras como aquela paciente. O bisturi do médico, o mais famoso do país, fez cortes na pele cicatrizada para criar novas cicatrizes em forma de Z, para aliviar o repuxo causado pelas queimaduras que atrapalhava a paciente ao datilografar.

Ela tirou do criado-mudo um exemplar de um de seus livros e ofereceu ao auxiliar de 24 anos, com a dedicatória trêmula: "Ao dr. Matta, desejando-lhe felicidade. Escrevi com a mão operada. Clarice Lispector. 16 - abril - 1974".

Na cabeça do jovem médico —e futuro artista—, aquele encontro na Clínica Pitanguy, no Rio, ficaria marcado para sempre, como aconteceu com tanta gente que se encontrou com Clarice. O que os leitores dela não sabiam é que em sua obra também ficou uma marca importante daquele encontro, que vem a público agora, quatro décadas depois.

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Sérgio Matta, o auxiliar cirúrgico que acolheu Clarice —e foi acolhido por ela— numa situação que tinha tudo para ser impessoal, seria a fagulha que ela usou para batizar Rodrigo S. M., narrador de "A Hora da Estrela", saga da datilógrafa nordestina Macabéa, o romance mais popular da escritora, lançado em 1977, pouco antes de sua morte.

Clarice "me viu e me adotou", contou S.M. para a reportagem, em sua casa, no interior de São Paulo. "Suponho que ela viu em mim um Macabéio. Que continuo a ser, até hoje, vítima, como ela, de estranhamentos." Durante a breve internação, conversaram sobre seus "ancestrais" e origens —a dele, em uma certa Ciudad Rodrigo, na Espanha.

A escritora reconheceu naquele self-made man caipira, "menino de fazenda" que falava quatro línguas e se tornara médico na equipe de Ivo Pitanguy, um "peixe fora d'água" como ela própria sempre foi.

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Matta passou a conviver e a colaborar com a escritora, que notou seu talento artístico e lhe encomendou capas e ilustrações de livros.

Na clínica, uma de suas funções era a de ilustrador técnico: fazia desenhos de observação das cirurgias para demonstrar a técnica do "gênio" Pitanguy, depois reproduzidos em publicações acadêmicas. Por sua habilidade com línguas estrangeiras, fez-se chefe da revista "Boletim de Cirurgia Plástica", publicada pela clínica.

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Figura enigmática, para uns um heterônimo como os criados por Fernando Pessoa, para outros um avatar ou alter-ego da própria Clarice, Rodrigo S.M. é motivo de profusos debates e teses na universidade. Jamais se especulou, porém, que tivesse origem biográfica.

Antes mesmo do prefácio de Eduardo Portella, a primeira edição de "A Hora da Estrela" traz a "Dedicatória do autor (na verdade Clarice Lispector)". É a primeira vez, diz Paulo Gurgel Valente, filho da autora, que surge um personagem "praticamente desconhecido, 'vindo do passado'", dos bastidores da obra de sua mãe. "Clarice tinha essa capacidade de se afeiçoar a pessoas que por acaso conviviam com ela. Havia uma curiosidade pela história de outro ser humano."

Ele recorda vagamente ter visto S.M. nos anos 1970, "rapidamente, na casa da minha mãe. Eu já não morava lá. Clarice despertava o desejo de pessoas de contar a própria vida, e Clarice se interessava".

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S.M. recorda ter visto um dos filhos dela em sua casa.

Depois de peregrinar por editoras, com intenção de publicar uma peça literária em que dá a sua versão, ficcional, sobre o encontro, Sérgio Matta bateu à porta da editora Rocco, que publica as obras de Clarice sob supervisão de Paulo Gurgel Valente.

Empenhado em celebrar os 40 anos de publicação de "A Hora da Estrela", ele pôs S.M. em contato com Benjamin Moser, seu biógrafo americano.

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"Quando falei com ele pela primeira vez, foi como se recebesse uma ligação do Macunaíma, ou do Riobaldo", brinca Moser, citando os famosos personagens de Mário de Andrade e Guimarães Rosa. "Eu fiquei atônito ao saber que esse avatar ficcional era na verdade um senhor que vivia no Estado de São Paulo."

Moser, assim como Gurgel e o próprio S.M., afasta a hipótese de que o médico e artista seja, literalmente, Rodrigo S.M. Não era do feitio da autora escrever histórias biográficas.

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Mas a revelação não deixa de ter interesse crítico, por revelar o contexto de seu método de criação. Segundo Moser, isso demonstra o modo de Clarice trabalhar, "colocando fragmentos da vida dela nos livros". Em "A Hora da Estrela", ela se valeu de notas que tomou ao observar tipos populares na Feira de São Cristóvão para compor tanto Macabéa como Olímpico de Jesus. Para Moser, é interessante também conhecer detalhes sobre a passagem de Clarice pela clínica de Pitanguy.

Lá, além de Clarice, S.M. teve contato com figuras como Liza Minelli, que levou uma tia para se operar lá, ou o cantor Cat Stevens, além de quase todos os sorrisos das colunas sociais da época.

Paralelamente, tratou uma multidão de "Macabéas" na Enfermaria 38 da Santa Casa, também comandada pelo cirurgião plástico —o local onde Pitanguy tratara os queimados de um trágico incêndio no Rio, nos anos 1950, episódio que revelou nacionalmente o grande talento do médico.

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S.M. frequentou o peculiar séquito de amigos na órbita de Clarice Lispector por cerca de dois anos, até sair do país, em 1976.

Ilustrou a capa de um livro de Agatha Christie, uma das muitas traduções que a escritora fazia penosamente para ganhar a vida. A pedido dela, fez as ilustrações —e também a capa— de seu famoso livro infantil "A Vida Íntima de Laura, História de uma Galinha". Comemoraram comendo galinha ao molho pardo num restaurante do centro do Rio.

S.M. se mandou para os Estados Unidos e foi estudar na França, onde soube que as conversas com a autora tinham virado literatura. Soube de Rodrigo S.M. após a morte de Clarice, ao receber um exemplar de uma amiga, na França.

De volta ao país, pouco a pouco abandonou a prática médica, mergulhando na atividade artística e nos meios underground. Participou de exposições e ganhou prêmios nos anos 1980. Ele ainda não havia consumado, porém, a expressão escrita, que agora veio com a intensidade de uma febre.

S.M. quer publicar o inédito "Uma Gruta Chamada Rodrigo S.M.", tributo em prosa poética ao encontro fundamental de sua vida. Abriu uma página no Facebook para reunir quadros e textos em torno do tema.

Em sua casa, no interior de São Paulo, parece ter urgência em se fazer ouvir. Dedica seu tempo a burilar o texto e a decifrar as formas ocultas em quadros pintados por Clarice e por ele.

S.M. os fotografa, trata as imagens no Photoshop e amplia, em busca de sinais, símbolos, contornos orgânicos. Também recorta pedaços de quadros pintados por Clarice, como a tela "Medo", procurando isolar elementos, como um seio que apresenta um tumor ou uma "mariposa sem dentes". Ele mostra uma imagem que, "de ontem para hoje", "pulou para fora" do quadro. "Nunca tinha visto isso."

No YouTube, gosta de assistir obsessivamente à última entrevista da escritora, veiculada na TV Cultura, às vésperas de morrer. Nesses momentos, é como se o ilustrador cirúrgico estivesse de volta. Ele olha para a mão da escritora e comenta: "Dá pra ver em close. Eu acho que ela está com uma plástica fresca naquela entrevista."

*Paulo Werneck é editor da revista literária "Quatro Cinco Um"

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