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Crise financeira de 2008 deixa marcas na sociedade da Islândia

DIOGO BERCITO, ENVIADO ESPECIAL REYKJAVÍK, ISLÂNDIA (FOLHAPRESS) - Existem duas Islândias no tempo: uma anterior ao colapso financeiro de 2008 e outra após. O país segue gélido, mas o trauma da crise alterou a economia, a política e mesmo as relações soci

Da Redação

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Escrito por Da Redação
Publicado em 03.12.2017, 04:35:00 Editado em 03.12.2017, 04:35:09
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DIOGO BERCITO, ENVIADO ESPECIAL

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REYKJAVÍK, ISLÂNDIA (FOLHAPRESS) - Existem duas Islândias no tempo: uma anterior ao colapso financeiro de 2008 e outra após. O país segue gélido, mas o trauma da crise alterou a economia, a política e mesmo as relações sociais, marcando uma fenda em sua história.

"Foi uma experiência traumática e dolorosa, e há ainda hoje bastante desconfiança em relação à classe política e ao sistema bancário", diz à Folha Gylfi Magnússon, que foi ministro da Economia entre 2009 e 2010.

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Os 330 mil habitantes da ilha haviam trocado durante os anos 90 a tradicional pesca de arenque pelo mercado financeiro, incentivados por uma política de privatizações. Bancos ofereciam àquela época empréstimos mais experimentais do que as canções da cantora local Björk.

Islandeses se endividavam em moeda estrangeira, como o iene japonês, e investiam em operações de risco -comprando de carros esporte a times de futebol. Os três maiores bancos nacionais chegaram a valer dez vezes mais do que a economia do país. Até que, em plena euforia, o sistema ruiu em 2008.

Como os bancos eram maiores do que o governo, não puderam ser resgatados. A moeda se desvalorizou pela metade e a Bolsa de Valores local caiu 97%.

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Depois dos duros anos de recessão, a Islândia se recuperou financeiramente. O PIB, de US$ 20 bilhões (semelhante ao da cidade de Curitiba), cresceu 7,2% em 2016 com o boom do turismo. Mas a ferida social continua pulsando. A classe política, responsabilizada pela crise, é desdenhada.

"Desde 2008, as quatro eleições foram traumáticas", afirma Magnússon. "Não importa o quanto a economia se recupere, as pessoas ainda punem os governos."

Existe de fato alguma culpa da classe política, afirma o ex-ministro, por ter criado os alicerces de um sistema financeiro prestes a entrar em erupção. Mas é injusto culpar apenas o governo.

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"Foi o fracasso de muitos: dos bancos, dos reguladores e das agências internacionais de classificação de risco, que nos davam boas notas", diz. "As famílias, porém, são responsáveis por suas próprias finanças, e tomaram decisões que sabiam ser ruins."

Mas a crise de 2008, conhecida em islandês como "kreppa", alterou a dinâmica. Hoje há mais receio de tomar empréstimos, lares não têm se endividado e os produtos financeiros de risco desapareceram dos cardápios.

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CONQUISTAR O MUNDO

O trauma da "kreppa" foi especialmente incômodo porque a expansão do mercado financeiro islandês nos anos 1990 e 2000 tinha coincidido com uma inesperada projeção externa do país.

"Era nossa primeira expansão econômica não relacionada à pesca, e de repente estávamos influenciando o restante do mundo com música, literatura e filmes, exportando ideias", afirma à reportagem Andri Snaer Magnason, um dos principais escritores islandeses contemporâneos.

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A cantora Björk, que lançou seu novo álbum no último dia 24, é o melhor exemplo do súbito alcance cultural da ilha. "Não é que eu a esteja culpando", brinca, "mas o país pensava que, se aquela garotinha podia conquistar o mundo, os outros também conseguiriam".

O país viveu naquelas décadas uma ambição econômica desmedida que, segundo Magnason, empregou "toda a massa intelectual em uma direção muito danosa". O capital direcionado ao mercado financeiro deixava descobertas outras áreas da economia, como o setor das start-ups.

RAIVA

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"Um dos resultados da crise foi surgir essa raiva, em especial contra os bancos, prejudicando inclusive as relações pessoais. Há a sensação de que parte das pessoas traiu as demais", afirma --é afinal um país com a população de Jundiaí (SP), em que muitos dos habitantes se conhecem ou são aparentados.

"A raiva se transformou em uma entidade em si, circulando pela sociedade como uma batata quente compartilhada pelo Facebook. "Temos raiva de alguma coisa nova todas as semanas."

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Como os outros setores, a cultura não escapou ao impacto da crise. Serviu de inspiração. A principal obra de Magnason, "A Ilusão do Tempo" (320 págs., R$ 24,20, editora Morro Branco), trata de uma caixa mágica onde as pessoas se escondem para fugir de aborrecimentos como segundas-feiras, o mês de fevereiro --e a "kreppa".

"É um livro sobre a fuga das coisas que não queremos enfrentar", afirma o escritor de 44 anos, "mas também sobre o que aprendemos ao viver os tempos difíceis."

MUDANÇAS

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Quase dez anos após o baque da crise de 2008, a Islândia voltou à erupção de bons indicadores econômicos, acompanhados por um renovado otimismo quanto ao futuro.

Mas, mesmo com todas as transformações pelas quais o país passou, é ilusória a noção de que todos os problemas foram solucionados, afirma o jornalista britânico Roger Boyes.

O país de fato mudou. Governos caíram, sim, e movimentos sociais chegaram a dar largada a uma Constituição escrita coletivamente pela internet.

"No entanto, as instituições não mudaram, e a maneira com que a ilha é governada também não", diz à reportagem. Boyes é autor do livro "Meltdown Iceland", sobre o derretimento da economia islandesa. "Os elementos que possibilitaram a bancarrota de 2008 ainda estão presentes."

Mesmo após os protestos pós-crise, afinal, a política continua a ser marcada pela corrupção e pelo nepotismo típicos dos anos 1990 e 2000.

O ex-primeiro-ministro Sigmundur David Gunnlaugsson, por exemplo, teve de renunciar em 2016 depois de seu nome aparecer nos vazamentos de documentos conhecidos como "Panama Papers".

Outro escândalo, desta vez envolvendo o pai do atual premiê, Bjarni Benediktsson, levou o país a eleições antecipadas em outubro passado --nas quais Benediktsson foi eleito mais uma vez.

O nepotismo, segundo Boyes, é a maldição da dimensão --com 330 mil habitantes e apenas duas grandes escolas na capital, "toda a classe política se conhece". "Políticos, chefes das agências reguladoras e executivos de bancos cresceram juntos", afirma.

O otimismo destes anos, portanto, tem algo de arriscado. "É a fase mais perigosa, porque as pessoas deixam de analisar o que deu errado", diz Boyes. "O país é tão corrupto quanto há dez anos. Mas, como o apocalipse da crise passou, pensam que podem seguir adiante."

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