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Volta à terra de origem faz "índios gigantes" triplicarem

Após três horas em estrada de chão, surge Kanaã, a primeira das cinco aldeias da Terra Indígena Panará. É uma referência à volta da etnia para a "terra prometida" após mais de duas décadas de exílio imposto pela ditadura militar. Mas o nome cristão, suger

Da Redação

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Foto: Fred Mauro
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Escrito por Da Redação
Publicado em 15.10.2017, 03:10:00 Editado em 15.10.2017, 09:49:40
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Após três horas em estrada de chão, surge Kanaã, a primeira das cinco aldeias da Terra Indígena Panará. É uma referência à volta da etnia para a "terra prometida" após mais de duas décadas de exílio imposto pela ditadura militar. Mas o nome cristão, sugerido por um pastor, revela também a influência cada vez maior do branco.

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Neste ano, os panarás comemoram 20 anos da demarcação de sua terra. Quase dizimados após o contato e em seguida desterrados para o Parque do Xingu, conseguiram regressar à região de origem em 1997.

Desde então, a população triplicou e hoje está em torno de 600 panarás, num dos casos mais bem-sucedidos de recuperação demográfica entre etnias indígenas.

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A tumultuada história do contato dos panarás tem meio século. Desde o final dos anos 1960, tentativas de aproximação frustravam os militares, que queriam afastá-los das obras das BR-163 (Cuiabá-Santarém), hoje um dos principais focos de desmatamento ilegal da Amazônia.

Cada investida malograda alimentava a imaginação do público brasileiro. Os panarás ganharam a alcunha de "índios gigantes" porque o único panará conhecido, que vivia entre os txucarramães, media 2,04 m.

No episódio mais dramático, em 1967, um grupo de panarás se aproximou do destacamento da Aeronáutica na Serra do Cachimbo. Temendo um ataque, o governo enviou às pressas um turboélice C-47, que se perdeu e fez um pouso forçado. Dos 25 a bordo, apenas 5 sobreviveram.

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Na floresta, a aproximação dos brancos causava terror. "A gente viva tranquilo, ia longe procurar a taquara pra flecha", diz Kretoma, que sobreviveu ao contato e hoje é uma das principais lideranças panarás. "Quando começaram a tentar o contato, a gente ficou parado, não tinha mais como andar por medo."

Em 1973, os panarás finalmente decidiram se aproximar da expedição dos irmãos Orlando e Claudio Villas Bôas. As impressionantes imagens do encontro, registradas pelo fotógrafo Pedro Martinelli, deram a volta ao mundo, embora a expectativa de que fossem gigantes não tenha se confirmado.

O fim do isolamento os colocou à beira da extinção. A caça escasseou, criando uma dependência da comida do branco. Passaram a pedir esmola, sofreram abuso sexual e conheceram o álcool. Doenças se espalhavam pelas aldeias e matavam rapidamente.

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Expostos à gripe e a outras enfermidades, de 34% a 41% dos panarás morreram nos dois primeiros anos, segundo dados compilados pelo jornalista da Folha Rubens Valente para o livro "Os Fuzis e as Flechas".

No início de 1975, a situação dos panarás era desesperadora. Para evitar o escândalo de mais uma etnia exterminada, a ditadura os obrigou a se transferir ao Parque Indígena do Xingu, criado em 1961 e que abrigava outros povos. Embarcaram em avião apenas 79 panarás.

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"Foi na marra, fomos com engano pro Xingu", lembra Suakie, uma das poucas mulheres nascidas antes do contato. "Falaram que tinha panarás lá."

A adaptação ao Xingu nunca ocorreu. Os panarás não reconheciam as frutas e estavam acostumados a rios menores e à terra mais fértil. Nos 22 anos que permaneceram ali, mudaram de aldeia sete vezes.

"No início dos anos 1990, eles estavam morando no limite do parque e fazendo incursões em direção à terra deles. Fiquei preocupado de haver conflitos com fazendeiros e outros riscos", lembra o indigenista e secretário executivo do ISA (Instituto Socioambiental), André Villas-Bôas.

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Com a ajuda de Villas-Bôas (parente distante dos irmãos) e outros indigenistas, em 1993, os panarás fizeram uma expedição à área original. A maior parte já havia sido "comida pelo branco": garimpos, pastos e as cidades de Guarantã do Norte e Matupá e Peixoto de Azevedo, todas em Mato Grosso, tomaram o território tradicional.

Mas nem tudo estava destruído. Em um sobrevoo, os panarás descobriram que a parte nordeste do território, protegida por montanhas, estava preservada. Iniciou-se então uma negociação com o governo federal que levou à homologação de 500 mil hectares, no final de 1996.

Em 2003, com apoio jurídico do ISA, os panarás obtiveram outra vitória. Em decisão inédita do Supremo Tribunal Federal (STF), receberam cerca de R$ 1,2 milhão pelos danos sofridos durante a abertura da BR-163.

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A volta fez bem aos panarás. Com o crescimento populacional, expandiram de uma para cinco aldeias. A roça tradicional foi retomada e impressiona pelos desenhos geométricos. A língua panará é falada desde a infância. Poucos dominam o português.

Quatro aldeias ficam às margens do rio Iriri. "Saímos pro Xingu sem criança, só adulto. Lá, demorou pra criança aparecer. Aqui, a vitamina está aumentando o número de crianças, a comida é muito forte", diz Suakie, mãe de sete filhos e avó de dezenas de netos --perdeu a conta.

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A crescente presença da cultura não indígena, no entanto, é uma grande preocupação dos panarás mais velhos, que, em número reduzido, são insuficientes para transmitir conhecimento às crianças e adolescentes.

Três aldeias podem ser alcançadas de carro --a cidade mais próxima é Guarantã do Norte (MT). Há escolas indígenas, com ensino adaptado à cultura panará, e posto de saúde. A aldeia principal conta com um telefone público e já teve internet --o equipamento estava quebrado durante a visita da reportagem.

"O pessoal brincava muito com festa, fazia corrida de tora quando tinha a menstruação das mulheres. Isso está quase sumindo" diz Akan, um dos antigos. "O jovem usa mais celular, ouve música do branco, e, por causa disso, se esquece do tradicional."

Há também a pressão das fazendas vizinhas da área --uma pequena parte foi convertida em pasto antes da demarcação. Em julho, houve inédita mortandade de peixes no Iriri --duas investigações sobre a causa ainda estão em andamento e uma delas detectou agrotóxico na água.

"A gente não vai viver na paz", diz Kypakia, 28, sobre como imagina seu povo daqui a 20 anos. "Panará vai esquecer nossa língua, vai ter loja e boteco na aldeia."

"São poucos velhos e há uma ruptura de ações cotidianas. Eles andam menos no mato, caçam menos, fazem menos artesanato, contam menos história", avalia Paulo Junqueira, coordenador-adjunto do Programa Xingu do ISA.

"Duas gerações atrás, eles viveram o contato do branco com eles", diz. "Agora é o momento de eles fazerem o contato com o branco. Estão vindo [à cidade], acessando, assimilando. Essa é a geração do contato efetivo. É um grande desafio."

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