Numa sociedade cada vez mais acostumada com os descartes, as relações abreviadas acabam naturalizadas. No ambiente do trabalho, as relações de curta duração entre empresas e empregados, de tão comum, ganharam até um nome próprio: turnover. A rotatividade de mão de obra nas empresas é um problema que mobiliza empreendedores, pesquisadores, consultores e, principalmente, gestores de pessoas nas empresas.
Exatamente por conta desse cenário, relações de trabalho mais duradouras chamam tanto a atenção atualmente. Encontrar trabalhadores com mais de 20 anos de trabalho numa mesma empresa já não é mais tão simples. Acima dos 30 anos, uma surpresa. Gente com mais de 40 anos na mesma empresa parece meio “fora da curva”, quase um “absurdo” na sociedade atual, acostumada a desfazer amizades, por exemplo, com um clique.
As relações longevas, até por razões óbvias, são uma marca da chamada geração baby boomer, aquelas pessoas que nasceram entre o fim da Segunda Grande Guerra e meados dos anos de 1960. Essa marca também está muito presente na geração posterior, a chamada Geração X, como são conhecidos os nascidos a partir do final da década de 1960 até os anos de 1980.
Mas, afinal, o que leva uma pessoa a ficar no mesmo emprego por 20, 30 ou 40 anos? Para marcar o Dia do Trabalhador, nesse ano, a Tribuna resolveu conversar com alguns personagens, cujas relações trabalhistas com a mesma empresa já se conta em décadas, uma contagem temporal no mínimo estranha para uma sociedade digital, cujo ritmo acelerado costuma colocar as relações no limite fugaz do instante.
A Tribuna conversou com quatro personagens “da velha guarda” para tentar elucidar o segredo dessas relações trabalhistas mais longevas. Embora as conversas tenham sido rápidas – afinal, a vida urge, ainda mais no mundo digital – é possível encontrar algumas pistas para compreender esse fenômeno.
Há uma profundidade filosófica, nessas relações trabalhistas e, algum desavisado, ao ler, pode até lembrar de frases feitas de manuais de autoajuda. Mas não tem nada disso. Tira salário de cena, tira um plano de carreira. O que sobra? O que mantém essas pessoas no mesmo emprego, tantos anos depois? É sobre isso que ensinam os personagens.
Eles têm uma lealdade canina. Mas não ao emprego, ao salário, à carreira, ao status. Também não é comodismo, como rapidamente muitos poderiam sentenciar, em julgamentos rasos. A lealdade deles é ao que fazem. Todos vão aumentar o brilho nos olhos na hora em que explicam que fazem o que gostam, que amam o que fazem, seja o simples trabalho de vender roupas para clientes dos mais diversos tipos, ou seja descortinar um mundo complexo para jovens apressados (as gerações Y e Z, os nascidos no tal mundo digital), numa sala de aula.
FAMÍLIA SE CONSTRÓI COM O TEMPO
Antônia Lucimar do Nascimento Azevedo, de 66 anos, é figura carimbada para quem entra nas Lojas Marcato, em Apucarana. Vendedora, ela está lá há 26 anos. “Eu gosto do que faço. E quando a gente gosta do faz o tempo passa que a gente nem percebe”, filosofa, tentando explicar o tempo no trabalho. Lucimar, como gosta de ser chamada, diz que o segredo é trabalhar com amor pelo que faz, trabalhar com dignidade.
E esses anos todos, garante, não a colocam numa zona de conforto. “A cada dia que passa, é como se fosse o meu primeiro dia. Dá até aquele friozinho na barriga. É como se fosse, todos os dias, o primeiro dia de trabalho”, diz ela, jurando que não é exagero. “É que faço o meu melhor, todos os dias. Já passou muita gente por aqui nesses anos. Hoje, as pessoas trocam tudo muito facilmente. Até casamentos”, raciocina. E rapidamente informa que também mantém, diariamente, o mesmo casamento, celebrado em 17 de abril de 1982.
Na mesma loja de Lucimar, a Marcato, há outras funcionárias também com muitos anos de casa. Suserli das Graças Ribeiro, embora 11 anos mais jovem que Lucimar, é ainda mais antiga de casa. Ela trabalha há 36 anos na empresa. “Eu entrei na empresa em 1986. Era caixa. Era solteira. Hoje, sou responsável pelo financeiro da empresa, sou casada, mãe de dois filhos adultos, uma de 31 anos, outro de 26”, resume, mostrando o tanto de história que já viveu ali.
Ao tentar explicar a longevidade, diz que tanto ela quanto a empresa vão se adaptando nessa convivência, exatamente como ocorre numa família. E nem tudo são flores, avisa. “Claro que tem problemas, tem dias que dá vontade de chutar o balde”, diz. “Isso é normal”, avisa, enquanto ensina que, nessas horas, o melhor a se fazer é respirar, como prática para não piorar conflitos do cotidiano.
Para Susi, como é chamada pelas colegas de trabalho, o segredo é lembrar que todo mundo vive dias bons e dias ruins. “A gente tem dias bons e ruins. Isso pede paciência, bom senso e respeito ao próximo. Tem dias que estamos bem. Tem dias que estamos alterados. É bom saber reconhecer isso e quando estiver alterado, ficar mais atento, mais cuidadoso para evitar conflito. E se houver conflito, não agravar. Espera passar e depois conversa”, ensina.
Susi diz que a loja é uma empresa familiar, tem um bom ambiente. “E a gente acaba se sentindo em casa, mesmo”. Ela lembra que a maioria das colegas mais antigas entrou solteira na empresa. “Todas fizeram família enquanto funcionárias aqui. Então, as relações são diferentes, vão além daquela relação comum entre empregado e patrão. É uma relação mais forte, mais próxima”, explica.
Ela conta que já tem “uma vida inteira” na empresa, fazendo todos os dias, a mesma coisa. “Até o trajeto que faço diariamente, é o mesmo. E não consigo me ver de outra forma. Como vai ser quando parar? O que vou fazer? Não dá para imaginar outro ambiente, outro lugar de trabalho, outros colegas”, afirma.
Outro trabalhador de relações longas com a mesma empresa, em Apucarana, é Reinaldo Silvério, figura mais do que conhecida na loja O Doidão. Ele tem 62 anos. E está na empresa já há quase 35 anos. “Tenho 34 anos e meio de empresa”, precisa ele. “Sempre como vendedor”, avisa Reinaldo, que hoje, na verdade, é o gerente de vendas da loja.
Qual o segredo? Reinaldo ri, pensa um pouco e diz que “é como uma doença sem cura, impregnada na gente”.
Ele não esconde o orgulho da própria história, desses anos todos dedicados ao trabalho na mesma empresa, de cuja história também faz parte. “Tenho certeza que o segredo é gostar do que faz. E a receita de sucesso é se dedicar”, arremata, como se fosse um coach da geração digital, cuja lealdade costuma ser questionada. Para Reinaldo, dedicação “faz as “coisas fluírem”.
O gerente de vendas diz, no entanto, que as coisas nunca são fáceis. “Não é fácil não. Lidar com pessoas é difícil e exige muito, o tempo todo”, ensina ele.
Reinaldo conta que viu muita gente passar pela empresa, pessoas que chegaram e que se foram. “Já tive muitos colegas mesmo, pessoas que seguiram seus caminhos, que cresceram. A empresa dá oportunidade de crescimento. A gente incentiva os jovens no processo de crescimento pessoal. Mas tenho colegas de casa mais de 20 anos aqui. A empresa vira família da gente, mesmo”, diz.
PROFESSOR ZUMAS, ACREDITE, TEM 43 ANOS DE CASA
E se profundidade das relações sociais se mede em tempo, o professor Pedro Zumas, 74 anos, é um personagem abissal. Para se ter ideia, ele começou a trabalhar no atual emprego, de professor, no mesmo ano que em a primeira mulher brasileira assumiu uma cadeira no Senado da República, depois da princesa Isabel. Eunice Mafalda Berger Michiles, uma professora, assumiu uma cadeira pelo Amazonas, no Senado, em 1979.
Zumas trabalhava no Colégio São José, até 1979, quando foi contratado para trabalhar no Colégio Canadá. Ele o professor Ohya foram os primeiros contratados do Canadá, hoje Colégio Platão. E lá se vão 43 anos de carteira assinada na mesma empresa.
Aliás, Zumas lembra que em sua carteira de trabalho, numa das páginas iniciais, havia um texto inicial em que se fazia uma certa metáfora para ensinar sobre a importância das relações trabalhistas mais longas. Um texto que falava algo sobre abelhas que procuravam várias colmeias, como se um aviso sobre o futuro incerto dos trabalhadores que não se estabelecessem.
O professor Zumas nem lembra, com exatidão das palavras. Mas lembra que de alguma forma, elas marcaram sua vida profissional. “Era uma prevenção sobre o comportamento do trabalhador. Aquilo ficou na minha cabeça”, diz. E emenda uma de suas tiradas de humor, já tão conhecidas entre os alunos. “Se um dia desmontarem o colégio, desconfio que vou ter direito de levar para casa uns dois mil tijolos”.
Se não lembra das palavras exatas da carteira de trabalho, Zumas lembra do que mais importa, como o dia em que lecionou sua primeira aula no famoso cursinho do Canadá: dia 26 de julho de 1979. Uma proeza de memória para uma geração digital inteira que provavelmente não se lembra do que comeu no último almoço ou de uma sociedade que já deve ter esquecido em quem votou na última eleição.
E sobre memória, Zumas também brinca e diz que as vezes esquece até do próprio nome. “Um dia me disseram para eu usar meu sobrenome, Zumas. Porque professor Pedro existiam muitos. E Zumas, só eu”.
Zumas nem precisa dizer. Mas seu amor pela profissão explica tamanha longevidade mas relações de trabalho. “Hoje as coisas são diferentes”, conjectura. “Na primeira dificuldade, o sujeito pega o boné e vai embora”.
E se aprofunda um pouco mais no raciocínio. “Minha geração é diferente. Ela insiste mais, resiste mais”, analisa, cuidadosamente, para não dizer que a geração ama mais. “Nunca tive vontade de sair daqui. O segredo é gostar muito do serviço”. Zumas raciocina que, quando se faz muitas mudanças, é porque, talvez, não se goste muito do que faz. “A gente tem que fazer o que ama”, ensina.
Texto, Claudemir Hauptmann
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