O projeto de lei do marco temporal avança no Senado com dispositivos que incentivam a invasão de terras indígenas e prevê indenizações a grileiros. O tema central do texto é transformar em lei um entendimento de que só podem ser demarcadas as terras ocupadas até a promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988. Um estudo da consultoria legislativa do Senado, contudo, mostra que o PL vai além. Um dos trechos determina que, até ser concluído o processo demarcatório, "não haverá qualquer limitação de uso e gozo aos não indígenas que exerçam posse sobre a área, garantida a sua permanência na área objeto de demarcação". Na prática, alertam os técnicos, a lei significaria uma carta branca a invasores e grileiros. O artigo 9 da proposta é reconhecido como o "mais problemático". "Essa disposição, além de obviamente estimular a invasão de terras indígenas ainda não demarcadas, vai em sentido contrário a toda a doutrina e jurisprudência, ao próprio texto da Constituição Federal e aos precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos", diz a análise interna da Casa Legislativa. A demarcação de uma terra indígena leva anos, com vaivém no Executivo e no Judiciário. Como mostrou o
Estadão, há 114 terras indígenas com processos de homologação em fases adiantadas ("delimitadas" ou "declaradas"). A aprovação do projeto pode inviabilizá-las porque determina a revisão dos processos em curso à luz da nova lei. O artigo 11 prevê a indenização de "qualquer proprietário ou possuidor em terra indígena" nos casos de "justo título". O texto não exige a demonstração de "boa fé" da propriedade a ser indenizada, o que contraria expressamente o disposto no parágrafo 6º do artigo 231 da Constituição. O texto constitucional estabeleceu que "são nulos" e não produzem "efeitos jurídicos" os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse" das terras indígenas, exceto quando as benfeitorias "são derivadas da ocupação de boa fé". "O artigo 11 contraria esse dispositivo constitucional, prevendo justamente a indenização que a Constituição nega poder existir", frisa a consultoria do Senado. Ademais, no julgamento do caso Raposa Serra do Sol pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2009, que trouxe à tona a tese do marco temporal, ficou decidido que "as ocupações e domínios anteriores à demarcação não prevalecem sobre o direito do índio à demarcação de suas terras". A proposta de indenização no projeto do Congresso é um dos pontos já considerados passíveis de judicialização por grupos contrários à proposta. Como mostrou o
Estadão, a grilagem ficou digital e um instrumento do próprio governo acabou sendo usado para roubo de terras. O Cadastro Ambiental Rural (CAR), embora sem valor fundiário, passou a ser usado para que posseiros se vinculassem formalmente, com um documento oficial, a uma determinada área que não poderia ser privada. O registro, embora autodeclaratório, é aceito até para obtenção de financiamentos. O conjunto da proposta tem o poder de inviabilizar os mais de 100 processos de demarcação de terras indígenas em fases finais. Isso porque o artigo 33 prevê a vigência imediata e o artigo 14 estabelece que os processos "ainda não concluídos serão adequados ao disposto nesta lei".
Relatório na Comissão de Agricultura do Senado mantém versão da CâmaraO projeto foi aprovado na Câmara em maio e tramita no Senado. Relatora da proposta na Comissão de Agricultura e Reforma Agrária, a senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS) apresentou parecer ao colegiado no último dia 8 e manteve integralmente a versão aprovada pelos deputados. "A aprovação corresponderá, por uma parte, à solução mais adequada para viabilizar a resolução das questões legais e constitucionais envolvendo demarcação de terras indígenas no Brasil, e, por outra, à melhor forma para garantir previsibilidade, segurança jurídica e desenvolvimento ao País", destacou a relatora. Procurada na semana passada para comentar os novos trechos do projeto, por meio da assessoria de imprensa, a senadora não se manifestou. O relatório foi lido pela senadora na Comissão de Agricultura nesta quarta-feira, 16. Houve acordo para que haja uma audiência pública na próxima terça-feira e para que ocorra a votação no colegiado na próxima quarta. A proposta ainda precisa ser debatida e votada na Comissão de Constituição e Justiça. Só depois irá para votação no plenário do Senado, o que não tem data para ocorrer. Na Câmara, o texto tramitou sob o número 490/2007. No Senado, é o 2903/2023.