Pesquisa desenvolvida junto ao Programa de Pós-graduação em Engenharia Civil da UEL resultou em uma metodologia inédita para o planejamento e realização de cirurgias em pacientes com cardiopatia congênita, doença que atinge 10 a cada mil crianças nascidas. No Brasil, anualmente 28,9 mil crianças nascem com o problema, das quais cerca de 80% necessitam de cirurgia, sendo metade destas já no primeiro ano de vida. A pesquisa representa a tese de doutorado do engenheiro civil Paulo Cesar Duarte Junior, que desenvolveu o método motivado pelo diagnóstico de Síndrome do Coração Esquerdo Hipoplásico (SCEP), constatada em seu filho, em 2016.
O trabalho intitulado “Proposta de Planejamento Cirúrgico de Fontan baseado em Estudos Numéricos e Hemodinâmicos Tridimensionais” foi orientado pelo professor Hemerson Pinheiro, do Departamento de Construção Civil (CTU), e contou com coorientação do coordenador do Laboratório de Bioengenharia (Labbio) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Rudolf Huebner, onde são desenvolvidas pesquisas na área de engenharia cardiovascular. O trabalho teve como banca o professor Aron José de Andrade, diretor do Centro de Engenharia em Assistência Circulatória do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia, de São Paulo; o professor do Departamento de Clínica Cirúrgica do Centro de Ciências da Saúde (CCS) da UEL, Alexandre Murakami; o engenheiro mecânico consultor do Instituto ESS, Martin Poulsen Kessler; e a fisioterapeuta do Instituto Prevent Senior, Shirley Ferraz.
-LEIA MAIS: Saúde do Paraná convoca população a se vacinar contra gripe
A proposta de desenvolver um método de planejamento para apoiar cirurgiões cardíacos surgiu como um desafio para o engenheiro, depois de receber a notícia de que seu filho apresentava a Síndrome do Coração Esquerdo Hipoplásico, durante um exame de ultrassom, ocorrido em dezembro de 2015, com menos de 30 semanas de gestação. Ao se aprofundar sobre as consequências, ele se deparou com um problema grave sem tratamento definitivo e que exigiriam três cirurgias paliativas importantes para salvar o bebê.
“Foi um misto de sentimento. Na hora que recebi a notícia me questionei se teria a chance de pegar o bebê no colo”, confessou. A primeira cirurgia ocorreu quando a criança tinha apenas quatro dias. O casal se internou juntamente com o bebê no hospital Beneficência Portuguesa, em São Paulo, considerado referência em procedimentos cirúrgicos do coração. Foram necessários quatro meses de internamento, onde a criança acabou passando por duas cirurgias (cirurgia de Norwood e cirurgia de Glenn), mais duas plicaturas diafragmáticas. A terceira cirurgia para o tratamento eletivo, chamada de cirurgia de Fontan, ocorreu quando o filho tinha três anos.
Esta intervenção, também chamada de conexão cavo-pulmonar total, representa o último procedimento de uma estratégia de tratamento paliativo de cardiopatias congênitas complexas com ventrículo único anatômico ou funcional (também chamada de cardiopatia congênita com coração univentricular). A doença impede o funcionamento pleno do órgão e pode levar os pacientes à morte se não tratado cirurgicamente, pois com apenas um ventrículo funcional as funções de bombeamento sistêmico são comprometidas. O conjunto de cirurgias tem por objetivo adaptar o sistema cardiovascular, possibilitando que o coração direito realize o bombeamento sistêmico, função esta realizada originalmente pelo coração esquerdo. Já a circulação venosa, após as cirurgias paliativas, ocorrerá de forma passiva, sem passar pelo coração.
As ferramentas
O engenheiro civil utilizou ferramentas da engenharia para identificar os parâmetros de forma adequada. Utilizando um software licenciado para a UFMG e diversos outros programas livres, ele conseguiu identificar indicadores adequados para o projeto cirúrgico cardiovascular simplificado e seguro, assim como o método para a obtenção de modelos cardiovasculares eficientes para a cirurgia de Fontan.
Paulo descreve que inicialmente apresentou a proposta de desenvolver uma válvula de derivação cavo pulmonar. Foi nessa etapa que ele entrou em contato com a UEL, onde teve a oportunidade de fazer um mestrado. Segundo ele mesmo descreve, foi nessa fase de estudos que ele teve contato com o professor Altibano Ortenzi, que o apresentou o método dos elementos e volumes finitos, base para a proposta desenvolvida.
Já no doutorado, a meta era entender o comportamento do sangue nas regiões afetadas pela circulação de Fontan, para que a válvula de derivação (que leva o sangue para as artérias pulmonares e para o coração direito) fosse viabilizada. Paulo define o método como a utilização de modelagem numérica e simulações computacionais no campo médico, entendendo previamente o comportamento das estruturas envolvidas, avançando para o subcampo conhecido como Engenharia Biomédica.
Em sua tese, ele descreve ainda o que chama de Dinâmica de Fluidos Computacional (CFD) usada para a modelagem do fluxo cardiovascular, estabelecendo um ramo denominado Hemodinâmica Computacional. “Este robusto aparato de conhecimento multidisciplinar corrobora para as simulações de novos tratamentos médicos e cirúrgicos com a Hemodinâmica Computacional e também para a constituição de projetos de dispositivos biomédicos. Isso tudo aliado ao surgimento de tecnologias avançadas em imagens médicas e a capacidade de processamento computacional”, acrescenta.
No seu estudo ele utilizou programas de computador especializados que permitiram a segmentação das geometrias através de imagens médicas, imposição de condições com multiparâmetros, resoluções de cálculos numéricos complexos para a obtenção de resultados como pressões, perfis de velocidade, tensão de cisalhamento nas paredes da geometria, distribuição do fluxo sanguíneo pela estrutura estudada e até animações de interações do sangue com os vasos sanguíneos. Estas ferramentas conseguiram demonstrar a hemodinâmica local, possibilitando prototipar cirurgias virtuais e animações em quatro dimensões (3D+tempo), estudos da anatomia humana e fluxo cardiovascular.
Na descrição dos objetivos específicos, ele enumera que a proposta era identificar e avaliar a diferença de resultados obtidos entre as simulações que utilizam condições de contorno realistas e condições simplificadas. Um segundo objetivo foi propor um método simplificado para a elaboração das simulações numéricas do Planejamento Cirúrgico de Fontan, com base nos resultados obtidos entre as simulações.
Por fim, o pesquisador concluiu que a junção entre as engenharias, a partir de ferramentas para prever o comportamento hemodinâmico, e as áreas médicas, discutindo e aplicando o conhecimento previamente às cirurgias, representam uma alternativa para compreender a mecânica da circulação sanguínea. Possibilitam ainda a obtenção de resultados adequados ao tratamento das mais variadas cardiopatias, propondo soluções, modificando geometrias e parâmetros para que possa ser alcançado o melhor resultado possível.
O trabalho traz, ainda, tutoriais de todas as ferramentas utilizadas para que cirurgiões e engenheiros possam ter acesso aos experimentos virtuais. A proposta a partir de agora é continuar os estudos por meio de um pós-doutorado e em artigos científicos. Ainda de acordo com Paulo, o filho – que também se chama Paulo -, hoje tem sete anos de idade e leva uma vida normal, cursando o 1º ano do Ensino Fundamental em escola bilíngue. A expectativa é de que os estudos relacionados a imagens tridimensionais e simulação de cirurgias avancem e possam apontar para novas tecnologias a serem utilizadas em prol da vida, sobretudo beneficiando pacientes que apresentam cardiopatias congênitas.
Repercussão
Para o professor do Departamento de Clínica Cirúrgica do Centro de Ciências da Saúde (CCS) da UEL, Alexandre Murakami, a tese de doutorado de Paulo Duarte, estimulada pela doença do filho, traz melhorias para os processos cirúrgicos. A intenção é que mais pacientes sejam atendidos, com mais qualidade. “O trabalho em pesquisa requer muito esforço e criatividade para inovar, pensar diferente e contribuir. É preciso determinação para chegar a um resultado que aponte para a melhoria da qualidade dos atendimentos”, definiu.
De acordo com o cirurgião, a Síndrome do Coração Esquerdo Hipoplásico é considerada uma doença bastante grave, que leva a óbito centenas de crianças todos os anos. O tratamento consiste em procedimento cirúrgico estadiado e de risco elevado, que necessita de equipes capacitadas. Segundo ele, em virtude da complexidade, trata-se de um procedimento que necessita de ferramentas que possam apontar melhorias à replicabilidade dos resultados.
“Essas colaborações são importantes porque sugerem novas ferramentas que auxiliam no planejamento e realização dos procedimentos por mais equipes que ainda não tem a expertise, considerando que mais de 65% das crianças que necessitam de cirurgia cardíaca por cardiopatia congênita no Brasil não chegam a ter o tratamento devido a inúmeros problemas. Dentre esses problemas, está a falta de equipes capacitadas para a realização desses procedimentos complexos”, definiu o médico, acrescentando que o trabalho abre ainda um leque para futuros estudos propondo novas técnicas e que pode vir a incentivar outros pesquisadores.
Criador do coração artificial destaca precisão de dados em cirurgias
Criador do coração artificial, o professor Aron José Pazin de Andrade pode ser considerado um precursor no país da Bioengenharia, área que desenvolve instrumentos e ferramentas fundamentais para a medicina como esfigmomanômetros, hemodiálise, bombas infusoras, bombas de sangue, pulmões artificiais (ventiladores), desfibriladores e incubadoras neonatais. A tecnologia do coração artificial foi apresentada no final da década de 90, a partir da tese de doutorado do professor Aron, na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Engenheiro mecânico de formação, o professor foi um dos participantes da banca do trabalho, passando parte de sua experiência profissional para a validação da metodologia. Aron é o coordenador do centro de bioengenharia do Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia, em São Paulo, criado em 1959, e considerado referência em estudos e cirurgias na área cardiológica. Para o professor, a metodologia inédita para o planejamento e realização de cirurgias em pacientes com cardiopatia congênita é mais uma ferramenta para auxiliar médicos com dados precisos, direcionando vasos e oferecendo melhores chances para o paciente. Provocado pela Agência UEL, o professor Aron analisou a importância do método proposto pelo doutorando Paulo Cesar Duarte Junior.
Agência UEL – Como o senhor classifica este estudo? Qual a importância para melhorar a performance dos cirurgiões?
Aron José de Andrade – Eu acho que é inovador, inédito e muito importante. Trata-se de uma cirurgia muito complexa, realizada em três etapas. Os médicos têm muito pouco espaço para trabalhar porque os bebês são muito pequenos. Pela gravidade, qualquer melhoria na circulação, que possa criar facilidades para o sangue circular sem variações na velocidade vai repercutir no estado de saúde do paciente. Então, a proposta em si orienta o cirurgião matematicamente como direcionar os vasos e realizar a cirurgia em etapas. É uma orientação quantitativa.
Muitas vezes a cirurgia é feita de forma empírica, apostando na prática do cirurgião, sem dados precisos, sem saber exatamente o que vai acontecer. Por isso, é muito importante ter os dados matemáticos e quantitativos do que podem variar se alterar a posição da sutura dos vasos. Dessa forma, o cirurgião pode ter dados precisos e específicos, para cada paciente, respeitando a morfologia de cada paciente.
Agência UEL – O senhor acredita que esta proposta de metodologia de planejamento cirúrgico pode abrir portas para novas descobertas?
Aron José de Andrade – Sim, a metodologia pode ser aplicada para outras patologias, para outros problemas cardíacos de nascença porque utiliza um método matemático. A medicina evolui passo a passo. Existem muitos equipamentos sofisticados de tomografia, hemodinâmica, cateter etc., que são introduzidos nos vasos para medição. Então, um avanço como este abre portas porque representa uma tecnologia de precisão nos dados. Quando você faz um exame de cateterismo, é possível enxergar dentro dos vasos, ter imagens exatas de velocidade, turbulência e derivações de cada paciente. É necessário precisão nos dados e é isto que este estudo propõe porque cada problema é de um jeito. Aliás, toda essa precisão é possível pelo desenvolvimento tecnológico, pelo desenvolvimento da bioengenharia que ajuda muito por meio de ferramentas importantes para o médico tomar decisão.
Dados e exames quantitativos vão dando condições do cirurgião fazer um trabalho cada vez melhor. Isso é tecnologia. Muito importante para dar sustentação às decisões médicas, com mais certeza, juntando a experiência do médico, a tecnologia e os equipamentos. Há 20 anos um exame de imagem não trazia a mesma qualidade e o médico praticamente tinha de adivinhar. Hoje, a gente pega uma imagem de uma ressonância ou tomografia e é possível imprimir um biomodelo. O médico consegue enxergar dentro de um órgão, é possível imprimir a peça. É possível pegar e ver de perto um defeito congênito. É uma tecnologia de impressão de biomodelos, que ajuda o médico a fazer um diagnóstico cada vez mais preciso.
Por, Agência UEL