“A pandemia de Covid-19 já está resultando no aumento da exploração do trabalho infantojuvenil. Basta olhar para as ruas dos grandes centros para constatar que há mais crianças e adolescentes vendendo produtos, esmolando e trabalhando com materiais recicláveis.” O alerta é da procuradora-chefe da regional do Paraná do Ministério Público do Trabalho, Margaret Matos de Carvalho, que, aproveitando o Dia Mundial de Combate ao Trabalho Infantil (12 de junho), faz um apelo para que a população atue na proteção de crianças e adolescentes, seja por meio do diálogo, da ajuda ou da denúncia desse tipo de situação.
A promotora de Justiça Luciana Linero, do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça da Criança e do Adolescente e da Educação, unidade do Ministério Público do Paraná, diz que o trabalho precoce precisa sempre ser combatido não apenas pelos riscos imediatos, mas também porque traz prejuízos ao longo da vida dessas pessoas: “Quem começa a trabalhar cedo tem menos tempo para estudar, brincar, enfim, para viver sua infância e adolescência. Com isso, tem seu futuro comprometido por fatores como a baixa escolaridade.”
Impactos – Uma das dificuldades para se enfrentar o problema é o pensamento ainda presente em muitas pessoas de que o trabalho precoce é positivo. “É um problema cultural, porque muita gente entende o trabalho como um bom instrumento para a construção de um cidadão de bem. Mas, na verdade – e a Constituição Federal é bem clara em relação a isso –, essa é a missão da educação”, comenta Luciana Linero. Ela acrescenta que o trabalho precoce acaba justamente afastando as pessoas da escola e afetando o futuro delas, já que, com baixa escolaridade, terão dificuldades para conseguir boas oportunidades de emprego, precisando então se contentar com atividades que remuneram pouco. “No Paraná, que tem no agronegócio uma das suas principais fontes de riqueza, isso ocorre com bastante frequência nas áreas rurais, onde não são raras as justificativas de abandono escolar por conta da necessidade de trabalhar na lavoura para auxiliar a família”, revela.
A procuradora Margaret Matos, do MPT, comenta que falta empatia para as pessoas que pensam que o trabalho é o melhor para as crianças e adolescentes, sobretudo as pobres, por acreditarem que desse modo elas ficam longe do crime. “Em geral, quem defende isso não quer o mesmo para seus filhos. Além disso, há estudos que mostram que a maioria dos adolescentes que cumpre medida restritiva de liberdade já trabalhou. Portanto, o trabalho precoce não é o melhor para ninguém. O melhor é dar condições para que a criança e o adolescente possam ir para a escola, ter lazer, desenvolver habilidades culturais e sociais.”
Acidentes – Além dos prejuízos futuros, o trabalho precoce também expõe crianças e adolescentes a perigos imediatos, como os acidentes de trabalho. O risco é maior para essa parcela da população, porque nessa fase da vida o tempo durante o qual uma pessoa consegue manter-se concentrada é menor. Com isso, os acidentes não apenas ocorrem com maior frequência como também são mais graves. Somente no ano passado, no Paraná, segundo a procuradora Margaret Matos, ocorreram 59 acidentes de trabalho graves com crianças e adolescentes.
Mesmo quando não há o registro de acidentes, os efeitos do trabalho precoce podem ser sentidos, pois não é incomum que, dependendo da atividade, ele provoque deformações ósseas, problemas de crescimento e dores persistentes, além de problemas emocionais e transtornos diversos. “Têm sido muitas as lesões graves decorrentes do trabalho exercido por crianças e adolescentes que ainda não possuem a formação física adequada para suportá-lo, isso sem falar no número de mortes decorrentes de acidentes de trabalho”, acrescenta Luciana Linero.
Campanha nacional – Neste ano, o aumento do risco de exploração do trabalho de crianças e adolescentes, em decorrência da pandemia de Covid-19, é o foco da campanha nacional contra o trabalho infantil, realizada pelo Ministério Público do Trabalho, Justiça do Trabalho, Organização Internacional do Trabalho (OIT) e Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil. Com o slogan “Covid-19: agora mais do que nunca, protejam crianças e adolescentes do trabalho infantil”, a iniciativa está alinhada à proposta global da OIT. O objetivo é conscientizar a sociedade e o Estado sobre a necessidade de maior proteção a essa parcela da população, com o aprimoramento de medidas de prevenção e de combate ao trabalho infantil, em especial diante da vulnerabilidade socioeconômica resultante da crise provocada pelo coronavírus.
Entre as atividades da campanha, durante o mês de junho, serão exibidos 12 vídeos nas redes sociais com histórias reais de vítimas, que integrarão a série “12 motivos para a eliminação do trabalho infantil”. Está prevista ainda a veiculação de podcasts para reforçar a necessidade de aprimoramento das ações de proteção a crianças e adolescentes neste momento crítico. Para este dia 12 de junho, foi programado ainda um seminário virtual em que serão debatidas questões como o racismo no Brasil, o trabalho infantil no contexto da Covid-19, os aspectos históricos, os mitos e os desafios da temática pós-pandemia. O debate será transmitido pelo canal do Tribunal Superior do Trabalho no Youtube.
Números do problema – Segundo dados da OIT, em todo mundo, 150 milhões de crianças têm seu trabalho explorado atualmente. No Brasil, mesmo proibido, o trabalho infantil atinge pelo menos 2,4 milhões de meninos e meninas com idade entre 5 e 17 anos, segundo a mais recente Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) Contínua 2016, do IBGE.
No Paraná, que ainda pode ser considerado um estado agrícola, a procuradora Margaret Matos diz que a exploração do trabalho de crianças e adolescentes é mais frequente no campo, especialmente nas pequenas propriedades. Nelas, as crianças trabalham com os pais em regime de economia familiar, e a fiscalização é mais difícil, pois as crianças moram nesses locais, e para entrar neles, em função do princípio de inviolabilidade do lar, o fiscal precisa ter certeza prévia das transgressões de direitos. O fim desse tipo de situação, segundo a procuradora, exige a adoção de políticas públicas específicas e efetivas, que devem incluir a volta das escolas rurais.
Na zona urbana, as atividades informais, como a venda de produtos nos semáforos e a reciclagem de materiais, ainda são as que contam com maior número de crianças e adolescentes em situação de exploração. A procuradora diz que, em função da pandemia, esse tipo de situação tem sido mais comum, por causa das dificuldades econômicas por que passam muitas famílias, mas também porque as escolas estão fechadas, e os pais acabam levando os filhos junto por falta de opção e também para tentar sensibilizar mais as pessoas e conseguirem ajuda.
Luciana Linero lembra que havia, há alguns anos, um programa federal de combate ao trabalho infantil denominado Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), que fornecia uma bolsa de auxílio para que a família mantivesse a criança ou adolescente na escola e, portanto, com a renda complementada pelo programa. Com o Bolsa-Família, todos os programas foram unificados. “Acredito que com isso perdemos uma estratégia importante, porque não basta o auxílio financeiro a essas famílias, é preciso trabalhar para que elas compreendam a importância da educação e que ela é o único caminho para a ascensão pessoal e consequentemente familiar”, conclui.
O que diz a lei
Há quase 30 anos, o Estatuto da Criança e do Adolescente proíbe o exercício de qualquer trabalho aos menores de 14 anos, salvo na condição aprendiz. Segundo a lei, que completa três décadas no próximo dia 13 de julho, “considera-se aprendizagem a formação técnico-profissional ministrada segundo as diretrizes e bases da legislação de educação em vigor”, obedecendo princípios como a garantia de acesso e frequência obrigatória ao ensino regular, atividade compatível com o desenvolvimento do adolescente e horário especial para o exercício das atividades.
O ECA também estabelece que o adolescente tem direito à profissionalização e à proteção no trabalho, observando-se a “condição peculiar de pessoa em desenvolvimento”, e à capacitação profissional adequada ao mundo do trabalho. Além disso, a lei estabelece que é assegurado trabalho protegido ao adolescente com deficiência.
Remuneração e vedações – Aos adolescentes com idade entre 14 e 16 anos, o ECA assegura bolsa de aprendizagem, e aos que tiveram mais de 16 anos os mesmos direitos trabalhistas e previdenciários previstos para quem tem mais de 18 anos.
Ao adolescente empregado, aprendiz, em regime familiar de trabalho, aluno de escola técnica, assistido em entidade governamental ou não-governamental, a lei proíbe o trabalho com as seguintes características: noturno, realizado entre as 22 horas de um dia e as 5 horas do dia seguinte; perigoso, insalubre ou penoso; realizado em locais prejudiciais à sua formação e ao seu desenvolvimento físico, psíquico, moral e social; realizado em horários e locais que não permitam a frequência à escola.