Prédio de ex-usuários na cracolândia tem teste surpresa de droga e até namoro

Autor: Da Redação,
domingo, 18/06/2017

ANGELA PINHO

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Em alguns momentos, pode parecer um prédio residencial qualquer. Há camas, armários, geladeiras, micro-ondas e pessoas que ali dormem, fazem refeições, jogam baralho, recebem cartas.

A qualquer momento, porém, alguém pode aparecer e exigir um teste de urina do morador para detectar eventual uso de drogas. E, para viver ali, esse residente tem que assinar um contrato com compromissos como: não traficar, não praticar violência, não portar armas.

Localizada em um prédio na rua Helvétia, em Campos Elíseos (região central de SP), a residência monitorada recebe dependentes de droga em tratamento pelo programa Recomeço, do governo paulista.

A ideia é que fiquem ali pessoas que, no mínimo, tenham a abstinência como meta (elas fazem testes-surpresa semanais) e que precisem de um acompanhamento clínico mais próximo por ter quadro de saúde de gravidade média a alta, explica o psiquiatra Cláudio Jerônimo da Silva, que dirige o serviço.

Após 11 meses de funcionamento, um balanço inédito mostra que, dos 69 residentes que estão ou passaram por lá, 51% permanecem ali ou foram reinseridos socialmente, ou seja, moram em outro lugar e se sustentam por si; os outros 49% não seguiram até o fim. Dentro desse segundo grupo, cerca de metade ainda segue algum outro tipo de tratamento voluntário, por exemplo em comunidades terapêuticas, e outro grupo ainda recebe atendimento ambulatorial.

Já houve casos também de recaída, em que o morador abandonou o local com seus pertences dentro. Nessas situações, uma equipe tenta encontrá-lo. Depois, a permanência é reavaliada.

O ESPAÇO

Com 36 vagas para dependentes, a moradia é uma ilha de abstinência no meio da cracolândia. A três quarteirões dali, a praça Princesa Isabel chega a concentrar cerca de mil usuários.

O acesso ao prédio não tem horário fixo. O morador entra e sai quando quiser. Uma vez lá dentro, porém, precisa estar acompanhado se precisar ir para outro andar.

Essa tarefa é feita pelos conselheiros, profissionais treinados para atribuições como conversar com os dependentes e ajudá-los a procurar trabalho ou moradia.

Alguns usuários pedem também companhia para ir e voltar do banco, para evitar cair em tentação e gastar o dinheiro que tiverem em mãos.

Além dos conselheiros, atuam no prédio profissionais de saúde e de assistência social.

O tempo de permanência esperado para os moradores é de seis meses, prorrogáveis por mais seis. Hoje, dois terços dos residentes são homens. Segundo o diretor da unidade, a predominância do público masculino se dá por dois motivos: porque eles estão em maior número na cracolândia e porque ali não se pode viver com os filhos, o que é um obstáculo para parte das mulheres.

Moradora há quatro meses, Viviane dos Santos, 23, já teve filho, mas perdeu a guarda na época em que usava drogas. O garoto foi entregue para a adoção. "Ele tinha olho azul-piscina", lembra.

Os olhos de Viviane são verdes, contornados por um lápis preto. Na boca, alguns dentes quebrados, resultado dos tempos do vício.

Foram cinco anos usando crack e se prostituindo para comprar a droga. Parou há três, "depois da última vez que meu ex-marido me bateu", conta.

Foi parar na residência monitorada após internações em clínicas e comunidades terapêuticas. Namora "o Anderson, do sétimo [andar]", que conheceu ali perto, no Cratod (Centro de Referência de Álcool, Tabaco e outras Drogas). Às vezes jantam e tomam café juntos e, quando querem mais privacidade, vão para um hotel na região.

Hoje, faz por ali refeições e tratamentos de saúde. Recebe Bolsa Família e, na última quinta-feira, preparava-se para entregar um currículo. "Quero trabalhar, ser independente, ter outro filho."

O MEDO

Filhos também são uma preocupação para Kauê Gonçalves, 31. Foi por causa de suas duas meninas que ele resolveu deixar de usar drogas. Não foi fácil. "Com 18 anos, tomei o primeiro porre. Com 25, fumei a primeira pedra", diz.

Abstinente desde o último Natal, Gonçalves fez questão de ser fotografado para a reportagem. "A última vez que saí em um jornal foi numa foto com uma garrafa de cachaça na mão", explicou.

Chegou à residência no início do ano, após passar por dois tratamentos no Cratod e recair as duas vezes. Não costuma contar onde mora. "Existe muito preconceito."

Aprender a viver sem a droga envolve seguir um rígido tratamento médico --toma 12 medicamentos-- e repensar toda a rotina, em detalhes.

"Eu começo arrumando a cama. Se você deixa ela no jeito, seu dia flui." Ao longo do dia, tenta se ocupar. Trabalha em uma empresa de varrição --"voltei a pagar pensão", comemora--, joga futebol na vizinhança. Agora pensa em uma casa sua, e leva a sério a nova forma de lidar com as frustrações. "Minha casa vai ser um lugar onde eu vou chegar e, quando eu abrir a porta, talvez veja uma bagunça que eu deixei... e tudo bem."

Apesar da serenidade, confessa sentir um receio. Não é do crack. "A droga eu conheço, e do que a gente conhece a gente não tem medo. Tenho medo é do desconhecido."