O processo para transferir a competência de fiscalização de armas de fogo de caçadores, atiradores e colecionadores (CACs), das Forças Armadas para a Polícia Federal (PF), está emperrado no governo federal. A medida é considerada peça-chave para frear a disseminação desenfreada do armamento na mão de civis, que foi alvo de críticas do PT durante todo o governo Bolsonaro.
Nesta quinta-feira, 5, o ministro da Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski, afirmou que vai adiar por pelo menos seis meses o processo, o que coloca a fiscalização de armas no País numa espécie de "limbo", de acordo com especialistas ouvidos pelo Estadão.
O Ministério da Justiça, o Exército e a PF encerraram suas respectivas etapas para concluir o repasse de atribuição. Os militares transferiram o Sistema de Gerenciamento Militar de Armas (Sigma) - o banco de dados das armas de fogo de uso permitido e restrito dos CACs no País - para os policiais federais, que integraram os dados à sua própria plataforma, o Sistema Nacional de Armas (Sinarm).
O acordo envolve não só a fiscalização, mas a concessão dos registros de armas para os CACs, hoje também sob responsabilidade do Exército. Servidores envolvidos no processo, no entanto, se queixam da demora do governo federal em fazer sua parte. A polícia fez reivindicações ao Palácio do Planalto para conseguir arcar com a demanda extra, mas nenhuma delas foi atendida.
Entre os pedidos feitos ao governo Lula estão a autorização para abertura de concurso para vagas dedicadas à fiscalização de armas, recursos para contratação de terceirizados e a publicação de um decreto regulamentando a reestruturação administrativa para a admissão da nova atribuição. A ideia é que o controle de armas ganhe uma coordenação-geral específica dentro do organograma da corporação. Hoje o tema está sob a Coordenação-geral de Controle de Serviços e Produtos, responsável também por produtos químicos e segurança privada.
Volume
A preocupação recai sobre o volume de armas de fogo que ficará a cargo da PF. A previsão é que a corporação herde dos militares a fiscalização de 900 mil CACs e 1,3 milhão de armas. Atualmente, o Sinarm é responsável por 3 milhões de armas.
O prazo para a transferência da competência se encerra em 1º de janeiro, e policiais federais dizem que se a corporação não receber orçamento, efetivos e infraestrutura necessários para a demanda extra de trabalho, a fiscalização poderá sofrer um apagão. O diretor-geral da PF pediu à pasta da Justiça o adiamento do prazo para assumir a fiscalização completa. Enquanto isso, três turmas de 60 servidores cada vêm fazendo treinamentos para aprender a operar a nova atribuição.
Caberá ao Ministério da Gestão e Inovação, da ministra Esther Dweck, avaliar a demanda por estrutura. Procurada, a pasta diz que não comenta propostas em análise: "Seguindo suas competências legais e regimentais, o Ministério da Gestão está analisando a proposta de aperfeiçoamento da estrutura encaminhada pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública", limitou-se a responder.
Após criticar o projeto de armamento da população civil de Jair Bolsonaro durante a campanha eleitoral de 2022, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou um decreto no ano passado que estabeleceu restrição para alguns tipos de calibre, colocou maior limite na aquisição de armas e munições e criou regras para instalação e funcionamento de clubes de tiro.
'Instrumento letal'
O tema se tornou um campo de batalha entre governo e oposição. Convocado a prestar esclarecimentos sobre a gestão de sua pasta, Lewandowski foi questionado ontem a respeito do assunto por deputados bolsonaristas.
"O governo passado liberou amplamente a posse a o porte de armas. Este governo tem uma visão distinta. Ele entende que a circulação de armas no País precisa ser regulamentada, porque arma é instrumento letal, leva pessoas à morte, e há consenso entre especialistas (que mais armas em circulação levam a mais mortes)", disse o ministro.
A capacidade do Exército em fiscalizar armas de fogo e munições vem sendo contestada nos últimos anos. Em 2023, o Tribunal de Contas da União (TCU) publicou o relatório de uma auditoria que encontrou "sérias fragilidades" em todas as áreas do controle militar: autorizadora, fiscalizadora e reguladora. "As deficiências encontradas, porém, em sua maioria, não se iniciaram em 2019 - isto é, já estavam presentes antes disso -, mas tomaram proporções maiores em razão da ampliação de administrados proporcionada pelas flexibilizações normativas ocorridas a partir daquele ano", diz o documento.
O Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) estima que, entre 2017 e 2022, o número de pessoas com certificados de registros de CACs, sob responsabilidade do Exército, aumentou em 1.140% e chegou a 783,3 mil. O Instituto Igarapé, por sua vez, levantou que o número de armas em acervos de CACs subiu mais de 300% em cinco anos. Em dezembro de 2018, eram 350,7 mil. Em julho deste ano, a quantidade chegou a 1,5 milhão.
'Recompra'
Roberto Uchôa, policial federal que trabalhou entre 2015 e 2020 no Sinarm e conselheiro do FBSP, diz ser preocupante o "limbo" em que o País se encontra enquanto a PF não assumir completamente a fiscalização, já que os militares não estão mais incumbidos da tarefa. "Já ficou claro, principalmente pelo que a gente observa ao longo do tempo e pelo que o relatório do TCU mostrou, que os militares não conseguem fazer esse papel de forma adequada. Eles permitiram que criminosos adquirissem armas", disse Uchôa, para quem o repasse da competência da fiscalização é uma medida insuficiente para frear a disseminação de armas.
"O governo federal tem deixado de fazer algo crucial: ele apertou o cerco, mas não está dando uma porta de saída para quem tem arma de fogo. É preciso um programa nacional de recompra de armas. Se isso não for feito, essas armas vão acabar no mercado ilegal. Quem comprou uma arma por R$ 5 mil não vai querer vendê-la (ao governo) por R$ 200."
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.