As Vozes Que Não Eram Minhas

Autor: Da Redação,
Friday, 12/12/2025
As Vozes Que Não Eram Minhas

Passei a vida acreditando que aquela voz na minha cabeça era minha. Não uma, na verdade - um pequeno coro, afinado quando queria me erguer, desafinado quando decidia me derrubar. Caminhavam comigo como um sussurro constante, discreto o suficiente para parecer natural, insistente o bastante para nunca me deixar em silêncio. Eram o meu espelho íntimo, eu pensava, o eco mais secreto do que eu era.

Mas havia dias estranhos em que elas pareciam… sábias demais para terem nascido de mim. Noutras, cruéis demais para caber no rosto que eu mostrava ao mundo. Ainda assim, segui convivendo com elas, como quem aceita o clima: há dias de sol, há dias de tempestade - e pronto.

A verdade, porém, é que as vozes começaram a se revelar por contraste. Primeiro, quando hesitei diante de uma escolha tola - comprar ou não comprar um guarda-chuva, nada grandioso - e ouvi, quase com nitidez, uma frase que minha mãe repetia desde sempre: “se prevenir não é medo, é inteligência.” Minha voz não usaria aquela construção. Nunca usou.

Então vieram outras pistas. Ao tentar desistir de um plano difícil, surgiu a rigidez afetuosa do meu pai, com aquela mania de transformar conselho em sentença: “Se vale a pena, dói; se não dói, talvez não valha nada.” Era quase irritante - e exatamente a forma como ele falava.

E assim, camada por camada, fui percebendo: as vozes não tinham origem em mim. Eram fósseis vivos de gente que me moldou. O amor que perdi e que ainda me ensinava coragem ao pé do ouvido. A professora que dizia “você pode mais, não se esconda” sempre que eu ficava pequeno demais dentro de mim. O amigo que ria alto, até no silêncio, lembrando que drama demais estraga qualquer enredo.

No fundo, minha cabeça era uma assembleia. Eu achava que era solidão… mas era multidão.

Só na epifania final veio o espanto manso:

eu nunca estive sozinho dentro de mim porque, de algum modo, nunca fui só eu.

Carrego em mim quem me tocou, quem me levantou, quem me feriu, quem me amou. As vozes, essas que por tanto tempo julguei serem minhas - ora sábias, ora terríveis - são, na verdade, rastros de passagem, impressões digitais deixadas na argila ainda mole que eu era.

E o mais curioso é que, quando percebi isso, um novo silêncio nasceu. Um silêncio bom, desses que não assustam.

Porque, finalmente, descobri qual das vozes era a minha.

Era a que restava quando todas as outras se calavam.

Era pequena, tímida, quase errada.

Mas era minha.

E pela primeira vez, pude ouvi-la com nitidez suficiente para escolher: o que guardo, o que agradeço, o que devolvo ao mundo - e o que deixo, enfim, partir.